Cruzadas e terrorismo islâmico

15-12-2016 10:05

Quando, num debate, alguém condena o actual terrorismo islâmico há geralmente outro alguém que contrapõe com um qualquer crime ou suposto crime dos ocidentais. As Cruzadas costumam ser muito relembradas nesse contexto, o que se percebe não só por porem em palco, de lados opostos da barricada, o Ocidente e o Islão, mas também porque a sua evocação - supõem os que as evocam - permite matar dois coelhos de uma cajadada: por um lado, mostrar que os cristãos também fizeram barbaridades; por outro, sugerir que o terrorismo actual é uma espécie de resposta com juros a uma antiga e suprema violência ocidental para com os povos islâmicos. É por essa dupla razão que muitas pessoas invocam as Cruzadas (mesmo sabendo pouco sobre
elas) e as lançam no pano verde da discussão, à laia de ás de trunfo.

Ora, não há aqui qualquer ás, muito menos de trunfo. As Cruzadas são ou deviam ser uma carta
fora deste baralho. Todos os povos na História fizeram barbaridades algures e em algum momento. Nenhum país é impoluto e inocente nesse campo. Invocar velhas barbaridades para desculpar outras mais recentes é um círculo vicioso pois todos as fizeram e as Cruzadas foram elas próprias uma reacção a agressões anteriores. Para além disso, não atingiram apenas muçulmanos. As Cruzadas foram movimentos de fé descontrolada ou mal controlada que arrastaram para leste uma multidão de militares, monges-guerreiros, pedintes, bandidos, oportunistas, prostitutas, místicos. Esse movimento custou muitos milhares de vidas ao mundo islâmico, é verdade, mas atingiu quase tudo o que teve o azar de lhe aparecer à frente, fosse qual fosse a língua ou o credo. Muita gente ignora que as Cruzadas começaram a matar na Europa. Os judeus alemães, as populações cristãs da Hungria e da península balcânica - Constantinopla foi tomada e saqueada em 1204 - sentiram na pele a brutalidade de multidões anárquicas que iam pilhando e matando à medida que avançavam para a Terra Santa.

Importa também não esquecer que quando falamos de Cruzadas ou de qualquer outro
acontecimento histórico temos de o inserir no seu tempo. Se o não fizermos, se o retirarmos do seu contexto, perdemos a perspectiva e a noção da proporção. No período em causa (finais do século XI a finais do século XIII), enquanto cruzados e sarracenos lutavam na Síria e na Palestina, os Mongóis, no outro extremo da Ásia, iniciavam a expansão militar que em poucos anos os levaria às portas da Europa Central e os lançaria com toda a força sobre o mundo islâmico. Durante boa parte do século XIII, esse mundo esteve sob as armas do Mongóis que
destruíram dezenas de cidades e massacraram metodicamente as populações urbanas ou rurais. Nalguns casos, como dizem os textos árabes, os Mongóis até mataram gatos e cães. Uma dessas tragédias ocorreu em Bagdade, que foi pilhada e incendiada em 1258, calculando-se que, só aí, os conquistadores terão trucidado umas 90 mil pessoas.

Se existisse algum nexo causal entre o terrorismo actual e as agressões e violências ocorridas há 800 anos então a Mongólia deveria ser um alvo da sanha vingativa dos terroristas muçulmanos, o que, como sabemos, não acontece. Outra coisa que também não acontece é a evocação, aqui no Ocidente, das barbaridades da expansão mongol. A acção militar de Gengis Khan e dos seus seguidores e descendentes foi muito mais destruidora de vidas e bens materiais do que as Cruzadas mas nunca aflora o espírito dos que gostam de apontar um dedo acusador às tragédias protagonizadas pelos povos ocidentais. Isso mostra que a evocação das Cruzadas no contexto de
um debate sobre terrorismo actual resulta de falta de conhecimento histórico ou de um preconceito ideológico anti-ocidental (ou de ambas as coisas). Visões menos preconcebidas e mais abrangentes permitiriam perspectivar melhor os assuntos, não para culpar ou desculpar - não é essa a função da História - mas para explicar e fazer ver o que é o terrorismo islâmico agora e o que foram as Cruzadas no seu tempo. Estabelecer paralelos ou nexos superficiais entre ambas as coisas mais não é do que tentar ganhar às cartas com um baralho viciado - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez no Diário de Notícias, 15 de Dezembro de 2016).