Comboios rigorosamente vigiados

04-04-2016 12:18

Não havia turmas mistas nas escolas e liceus que frequentei, nos anos 50 e 60, ou só as havia na fase final do ensino liceal e em casos muito particulares. Era muitas vezes assim, nesse tempo, e não apenas no âmbito escolar. Masculino e feminino costumavam ser sinónimos de mundos separados. Felizmente, a partir dos anos 70, o Portugal censório e puritano onde as mulheres não usavam biquini foi-se abrindo a outras formas de ver e as coisas, nesse plano, mudaram substancialmente. O horizonte das meninas e das mulheres tornou-se mais amplo, mais justo, e nas últimas décadas masculino e feminino passaram a coexistir e socializar nos mesmos espaços, salvo algumas excepções que têm que ver com o pudor e a nudez. Mas, tirando essas excepções, as mulheres frequentam com total à-vontade quase todos os espaços dantes reservados aos homens, da parada do quartel às bancadas do estádio de futebol. Ainda há "santuários" masculinos ─ como a taberna, por exemplo ─ mas estão em vias de extinção.

Essa tem sido a nossa maneira de viver, idêntica à de todas as sociedades não segregadas do Ocidente, que prezam e encorajam a igualdade entre sexos, e ainda bem que assim é. Foi, por isso, com alguma inquietação que soube que uma companhia ferroviária regional alemã, a Mitteldeutsche Regiobahn, decidira criar carruagens exclusivamente para mulheres na linha que liga Leipzig a Chemnitz. Essas carruagens estarão à disposição das passageiras que viajem sozinhas ou com crianças de idade inferior a 10 anos.

Alguma imprensa associou essa medida ao medo causado por gangs de muçulmanos. Certos jornais lembraram os acontecimentos da noite de fim-de-ano junto à estação de comboios de Colónia, na qual dezenas de mulheres sofreram ataques de natureza sexual por parte de homens de aspecto árabe. Um desses homens ─ um argelino ─, acaba, aliás, de ser formalmente acusado pela justiça alemã e vai ser levado a julgamento. O representante da Mitteldeutsche Regiobahn negou que a decisão de criar carruagens só para mulheres estivesse ligada aos acontecimentos de Colónia ou a problemas de assédio sexual. A ideia ─ disse ele ─ partiu das passageiras, "que querem mais privacidade", mas é muito provável que a palavra "privacidade", neste contexto, signifique sobretudo "segurança". Vem, aliás, a propósito lembrar que também no Reino Unido o problema se coloca, com premência, e que o próprio Jeremy Corbyn, o líder dos trabalhistas, sugeriu que, em horário nocturno, os comboios britânicos passassem a ter carruagens exclusivamente para mulheres, que assim estariam mais defendidas de agressores sexuais. E algo de semelhante já foi pensado para o metro londrino.

Não sei se estas precauções foram geradas por agressões de muçulmanos ou se tiveram uma origem e um âmbito mais abrangentes. Em teoria podemos até admitir que, em certos casos, e como afirmou o porta-voz da companhia ferroviária alemã, as mulheres queiram efectivamente
menos exposição. Mas mesmo nesse caso, nessa hipótese mais branda, estamos perante uma alteração de paradigma. O que me importa sublinhar aqui é que este nível de preocupação com a segurança ou com a tranquilidade das mulheres nos transportes públicos, venha ele dos órgãos decisórios ou das próprias mulheres, é um sinal de alarme que nos diz que algo está a mudar na Europa e para pior. Seja para defender seja para recatar quem nelas viaja, a criação de carruagens exclusivamente femininas representa um retrocesso civilizacional e um abalo em equilíbrios e igualdades que custaram muito a conseguir.

Eu gostaria de poder dizer a Corbyn e aos directores da Mitteldeutsche Regiobahn que a resposta adequada às questões da insegurança pública não pode ser a separação dos sexos. Gostaria de lhes dizer que as sociedades onde nos orgulhamos de viver não devem seguir essas estratégias de isolamento e compartimentação. Mas, se calhar, estou a ser ingénuo e a pensar segundo os
parâmetros de um mundo em vias de desaparecimento. Se calhar o mundo aberto onde até agora nos movemos já começou a fechar-se e as mulheres, que estão mais expostas a assédios e ataques, passaram a estar menos livres para viver a sua liberdade. E isso, se se adensarem as nuvens negras que vejo no horizonte, é uma injustiça e um grande empobrecimento. Para todos nós - João Pedro Marques (publicado pela primeira vez in Diário de Notícias, 4 de Abril de 2016).