Com água no bico

25-10-2024 11:25

Uma crítica literária é algo que se agradece, mesmo quando essa crítica é negativa. Contudo, se aquilo que se quer apresentar como crítica literária ou estudo académico parece conter, também, alguma má-fé, então esse agradecimento, exige uma explicação, algumas considerações prévias e, até, uma refutação dessa crítica. Vamos a isso? 

A autora da crítica literária chama-se Margarida Rendeiro e é investigadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova, de Lisboa. Esta senhora decidiu fazer um estudo sobre a minha escrita de ficção. Não sobre os oito romances que já escrevi, mas apenas sobre dois deles, que se passam quase inteiramente no mundo tropical e que tocam de uma forma ou de outra nas questões do início da colonização de Angola (Moçâmedes) e da escravatura. Os romances em questão são Uma Fazenda em África, publicado em 2012, e Do Outro Lado do Mar, publicado em 2015. Ou seja, já têm ambos mais de nove anos e pode acrescentar-se que tiveram quer um, quer outro, boa circulação e que foram lidos por muita gente, tendo ambos várias edições — Uma Fazenda em África já vai na 16ª.

Aqui chegados poderão os leitores do Observador perguntar porquê então só agora surge esta crítica de Margarida Rendeiro, tantos anos após a publicação desses dois romances? É que, na verdade, talvez não seja apenas uma inocente crítica literária, mas também um disfarçado ataque explicável no âmbito das guerras culturais e discussões sobre memória e passado colonial que têm marcado estes últimos anos, e nas quais tenho estado envolvido. Não concordando com o que eu defendo, mas não me podendo cancelar e não tendo conhecimentos suficientes para me contraditar em debate frontal sobre história da escravatura e outros temas de história colonial, os woke da nossa praça têm seguido caminhos ínvios e procurado estratégias ardilosas em que os ataques ad hominem abundam para tentarem descredibilizar-me. Como para além de historiador sou, também, romancista, e como a nível da História os woke são deficitários — se o não fossem não seriam woke —, alguém se terá lembrado de que eu poderia ser confrontado de viés pela porta dos meus romances.

Não sei se esse alguém foi Margarida Rendeiro, mas sei que foi ela que, por coincidência ou não, assumiu esse combate. Estudou os dois livros que referi acima e apresentou esse estudo no Iº Congresso de História Pública, realizado no início de Junho de 2023 na Torre do Tombo, e em mais dois ou três eventos académicos. Mas tê-los-á estudado com a imparcialidade que é exigível a trabalhos desta natureza? Tê-los-á analisado apenas por curiosidade intelectual ou interesse literário e académico, ou como forma de atacar um adversário político? Pelos comentários e notas preconceituosas e malévolas que a autora — que é comentadora regular na página de Facebook do académico-difamador Pedro Schacht e noutras — foi deixando cair ao longo do tempo, e por apreciações que outras pessoas woke fizeram sobre a intencionalidade do estudo em questão — houve até quem considerasse que esse estudo seria a forma de me desarmar ou abater —, há fortes razões para suspeitar de má-fé, mas Margarida Rendeiro esclarecerá, se assim o entender.

Esclareça-o ou não, o que importa dizer é que a investigadora resolveu recentemente publicar o seu estudo, dando-lhe o título de Sobre Romances Históricos e Anacronismos. Não vou entrar para já na refutação detalhada à forma como Margarida Rendeiro deturpou e tresleu o que escrevi nos dois romances em causa. Remeto os leitores que tenham interesse em lê-la para a parte final deste texto, onde, à laia de longa adenda e com o título “Leituras tortas”, a encontrarão na íntegra. Aqui, e muito resumidamente, bastará dizer que Margarida Rendeiro quis demonstrar, através desses dois romances, que eu seria guardião e transmissor do pensamento lusotropicalista e que, para sê-lo, teria tendenciosamente retirado relevância aos negros — o que é falso — e omitido, ou referido apenas vagamente, a violência colonial dos portugueses, ao mesmo tempo que acentuaria a sua brandura — o que é igualmente falso.

Margarida Rendeiro partiu para a leitura de dois dos meus romances históricos cheia de ideias feitas a respeito da minha pessoa e da história colonial. Partiu para o seu estudo literário com várias pedras nos sapatos e várias outras nos bolsos, prontas para me serem lançadas, o que não é boa receita e não produziu bom cozinhado. Uma Fazenda em África e Do Outro Lado do Mar tiveram dezenas de recensões críticas, geralmente muito favoráveis. Algumas foram escritas por conceituados críticos literários, outras por simples leitores interessados, mas nunca tinham tido uma crítica com tanta água no bico. Ao que parece estamos perante um novo exemplo dos métodos a que a gente woke deita mão para tentar atingir os seus objectivos políticos. Se, como suspeito, for esse o caso, saúdo Margarida Rendeiro e os seus correligionários por me ajudarem, ainda que sem querer, a ilustrar novamente esses métodos.

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Leituras tortas

Há dois livros de minha autoria — Uma Fazenda em África (2012) e Do Outro Lado do Mar (2015) — que são, para Margarida Rendeiro, exemplos e veículos do lusotropicalismo. Para tentar demonstrar essa tese, a investigadora omitiu certas coisas, fantasiou e deturpou outras, ou pura e simplesmente fechou o cérebro ao entendimento do que eu escrevi.

Ainda que tenha reconhecido que eu introduzi “rigor na representação dos factos, colocando na boca de personagens histórias e convicções” prevalecentes no Portugal do século XIX (p. 14), Margarida Rendeiro não valorizou esse rigor, muito pelo contrário,  considerou-o uma limitação. Em sua opinião, ao escrever aqueles dois romances, eu deveria ter “desconstruído” as concepções do século XIX (p. 11) e ter colocado em questão “a visão lusotropicalista sobre o passado colonial português” (p. 21). É que, para Rendeiro, os romances históricos deveriam obedecer a um propósito político purificador e justiceiro, numa palavra, a um propósito woke. “Num romance histórico” — escreveu ela —, “o desafio passa pelo exercício ficcional de desvelar ou ocultar (sic) nuances e complexidades, subscrevendo ou desafiando discursos lusotropicalistas em torno de heroicidades e branduras portuguesas, nomeadamente através da gestão do esclarecimento dos factos históricos para o leitor, tornando-os mais obscuros (sic) ou claros e alinhando-o, ou não, com a memória colectiva que o poder consagrou. Esse foi o desafio proposto pela académica Saydiya Hartman, quando pensou na estratégia da efabulação crítica que consiste em preencher os vazios do arquivo colonial que desumanizam ou tipificam os colonizados com o que poderia ter acontecido, dando-lhes profundidade subjectiva de forma a humanizá-los. A ficção tem essa capacidade para preencher vazios” (pp. 30-31).

A ficção tem, de facto, essa capacidade e até permite recriar de alto a baixo, o que é equivalente, como disse José Eduardo Agualusa, a propósito da sua mais recente obra, a escrever “um falso romance histórico”. Criar “falsos” romances históricos é uma opção, claro, mas não é e nunca foi a minha. Eu não escrevo romances históricos ideológicos nem políticos. Não tenho de combater o lusotropicalismo nem de abraçar a ideologia woke, não tenho de desconstruír nada para ficcionar coisas diferentes daquelas que o passado efectivamente nos deu. Um romance histórico não é nem tem de ser um panfleto político, não tem de contestar nem de desmascarar coisa nenhuma. Para isso tenho ao meu alcance os artigos de jornal, os textos académicos e muitas outras plataformas de intervenção pública. Os romances históricos devem, isso sim, ser interessantes, verosímeis e tanto quanto possível ajustados ao que efectivamente existiu. E essa foi uma das razões pela qual Uma Fazenda em África, por exemplo, recebeu várias críticas elogiosas. Uma delas, publicada no Jornal de Letras de 11 de Julho de 2012 e assinada pelo reputado ensaísta, romancista, professor e crítico literário Miguel Real, aplaudia o rigor desse meu livro, isto é, o respeito pela cronologia, pelo nexo dos acontecimentos, pela coerência e verosimilhança mesmo nas situações ficcionais, pela tentativa de reprodução do que eram a linguagem e os conceitos do tempo. Margarida Rendeiro, que olha para a História como boi para palácio, leu esse romance e, também, Do Outro Lado do Mar, sem perceber nada disso, mas mesmo que tivesse percebido não o valorizaria.

Em contrapartida, teria certamente valorizado se eu tivesse exagerado a violência dos brancos e feito sobressair a resistência dos negros a essa violência. Por isso me acusou — falsamente, note-se — de ter feito o contrário. Rendeiro afirmou que, no que escrevi, “a violência colonial” foi apenas “vagamente mencionada” e que foi “atirada para fora” dos meus romances (p. 14). Apesar dessas afirmações, reconheceu — contradizendo-se  — que introduzi no romance Do Outro Lado do Mar cruéis formas de castigo sobre os escravos, como, por exemplo, a máscara de ferro que os impedia de abrir a boca (p. 37). Considerou, porém, que eu deveria ter ido mais longe porque “o leitor percebe que se trata de uma forma de castigo, mas o historiador (João Pedro Marques) não esclarece se é uma forma de castigo consistentemente utilizado no mundo colonial ou se foi um acto isolado de uma personagem desagradável” (p. 38). Reparem: a investigadora Rendeiro, que advoga que o romancista se deve desligar da fidelidade à História para escrever uma narrativa alternativa, considera, porque isso agora lhe dá ideologicamente jeito, que o historiador deveria reentrar em cena para explicar certas coisas muito bem explicadinhas. Ou seja, em certos casos convém-lhe confundir a função do romancista com a do historiador, noutros quer fantasia e militância política. Ora, num romance, eu não tenho de explicar tudo exaustivamente. Isso é para um texto historiográfico ou para uma aula de História. Num romance basta muitas vezes uma alusão à violência ou à crueldade coloniais para que a mensagem passe. E sucede que, ao contrário do que Rendeiro afirmou, há dezenas de alusões dessas em Do Outro Lado do Mar e em Uma Fazenda em África, tal como há, também, descrições mais extensas, como é, nomeadamente, o caso do chicoteamento do escravo Gaspar. Rendeiro aludiu apenas a dois personagens desumanos — José Leite e Tarquínio Torcato —, mas há muitos outros brancos cruéis ou coniventes com a crueldade, como, por exemplo, um membro de uma expedição científica, Eusébio Agatão, que espanca negros; o juiz do tribunal que absolve José Leite (que matara um escravo à chicotada); Damião Costa, o negreiro de Luanda que “matou alguns homens e enviou muitos outros para a morte” e que “raramente tinha rebates de consciência”; Dona Inácia, que mandava castigar as escravas, dando-lhes pancadas nas mãos com uma palmatória de pau e ficava a assistir à punição “enquanto gozava a fresca brisa do mar”; Mata-ratos, o marinheiro que violava as mulheres transportadas no navio negreiro; Alexandre Sucupira, o leiloeiro que vendia os escravos em Salvador e que separava famílias sem dó nem piedade porque achava que as negras “não são como as mulheres brancas”; Inocêncio, o padre que abusava das pretinhas; o capataz Joaquim Navarro, que desde a infância torturava negros e que mandou castrar um escravo porque ele se atreveu a olhar de forma ousada para uma mulher branca; a sedutora e perversa Eugénia que fazia a escrava doceira usar uma máscara de ferro. Essas e outras personagens idênticas, que abundam nas páginas desses meus romances históricos, não aparecem no estudo da investigadora Rendeiro porque se aparecessem, fariam ruir, aos olhos de qualquer leitor isento, a sua tese sobre o meu suposto lusotropicalismo.

Porém, para que essa tese ruísse aos olhos da própria Margarida Rendeiro seria necessário que eu tivesse lançado nessas páginas não 15 ou 20 portugueses cruéis, mas sim que tivesse pintado todos os brancos com cores e sentimentos terríveis. Porque ao mesmo tempo que me censurava por não ser mais papista que o papa no que se refere à violência colonial, a investigadora Rendeiro lamentava que existam, nos meus romances, personagens brancas com bom coração. De facto, para a investigadora os meus protagonistas brancos “destacam-se pela sua humanidade e caridade para com os seus escravizados” (p. 25), pois comovem-se e ajudam-nos. Se a investigadora dominasse a História, se conhecesse a documentação, se tivesse lido peças teatrais como, por exemplo, O Preto Sensível, de José Agostinho de Macedo, e os jornais e a literatura da época, saberia que entre os brancos havia muitas pessoas que se impressionavam e comoviam com o horror que os negros passavam no caminho até à costa africana, na travessia do Atlântico ou nas plantações e minas americanas. Mas Margarida Rendeiro entre gente de pele clara só teria havido torcionários e homens e mulheres de coração gelado. Ora, não foi assim. A par da crueldade, que é inegável, também havia solidariedade, piedade, desejo de pôr fim a evidentes injustiças, impulso altruista para com quem sofria, e isso é bem sabido, está amplamente documentado e ficou — adequadamente, quanto a mim — patente nos meus romances.

De forma simétrica, e ao mesmo tempo que me acusou — falsamente, repito — de atenuar a violência dos brancos e de inflacionar a sua bondade para com alguns negros, Margarida Rendeiro condenou-me por transmitir uma imagem de passividade dos negros, o que é igualmente falso. Para tornar credível essa falsidade a investigadora afirmou que, nos meus romances, “os povos que vivem no interior africano e mantêm relações políticas e comerciais com os portugueses, são predominantemente representados como comunidades obedientes, razoavelmente passivas ou pacificadas, abertas e reconhecidas à branda presença portuguesa e os seus sobas invariavelmente agradecidos às garrafas de bebida ofertada” (p. 20). Para afirmar isto Margarida Rendeiro deturpou o romance Uma Fazenda em África, pois, entre várias omissões relativas à autonomia, rebeldia e capacidade de retaliação dos africanos, não referiu que o soba Caquituca Nambalo Quiquima estava longe de ser um homem obediente. Como escrevi no romance, esse soba, que sorria, mas desconfiava dos portugueses, “diria que sim a tudo e não faria nada do que prometia.” Não referiu, também, o importante episódio — aliás, verídico — em que os povos que habitavam a região que ia do Bailundo a Caconda atacaram Moçâmedes e destruíram as plantações. E também não valorizou que há, em ambos os romances, sobas que não se subordinam e revoltas de escravos, com morte dos brancos e ruína das suas propriedades.

Os leitores não se surpreenderão ao saber que Margarida Rendeiro também me acusou de enaltecer os brancos e de menorizar os negros. Em conformidade, afirmou que, nos meus romances “o ponto de vista assumido é sempre e somente (sic) o do português colonial”, e que as personagens que criei podem dividir-se entre “observadoras” — as europeias — “e observadas” — as africanas (p. 14). Acrescentou que os negros não “assumem protagonismo” (p. 24), sendo apenas “figurantes que cumprem ordens sem que a sua subjectividade seja consistentemente explorada e raramente aprofundada a forma como veem o mundo para além dos limites da afectividade que os une aos colonos” (p. 25). Ora isto é uma nova deturpação do que está nos romances, em que por vezes as personagens “observadoras” são brancas, mas outras vezes são negras. É igualmente falso que nos meus romances os negros não assumam protagonismo ou sejam simples “figurantes”. Kpengla, a amazona do Daomé que Peter von Sternberg depois levará para Angola — como pessoa livre, e não como “escravizada”, como Rendeiro erradamente afirmou (p. 28) —, tem um papel importantíssimo em Uma Fazenda em África, romance no qual outras figuras negras, como é o caso de Libango, o negro de olhar penetrante que ensinou Peter von Sternberg a caçar, também têm algum relevo no desenrolar da trama. É verdade que esse é um romance sobre a fixação dos primeiros colonos brancos em Moçâmedes, e está, naturalmente, mais focado nesses brancos do que nos negros. Mas Do Outro Lado do Mar já não é assim. Trata-se de um romance sobre a escravatura e o protagonismo está distribuído de uma forma mais equilibrada. Por isso, o trajecto e a vida de Quisama — que, no Brasil, passou a chamar-se Clarice —, é um dos três grandes canais através dos quais o leitor pode seguir e perceber plenamente o horror da escravatura desde o interior de Angola até à Bahia. O segundo desses canais é Sara, a escrava pela qual o médico Vasco Lacerda se apaixona. E há ainda um terceiro e mais importante canal: Gaspar, o negro que não se deixa dobrar ou intimidar, que lidera uma revolta de escravos no Brasil e que é, a par de Vasco Lacerda, a personagem central de Do Outro Lado do Mar. Contudo, e excepção feita a uma alusão fugidia no final do seu artigo (p. 37), Margarida Rendeiro passou Gaspar em claro. Outro tanto se diga relativamente a Sara, mencionada apenas de raspão (p. 29). Libango, esse, foi completamente omitido, ou seja, Rendeiro nem sequer o referiu, tal como também não referiu Januário Paraíso, o velho cocheiro que ajudava Quisama a adaptar-se ao Brasil e que “enchia o ar de canções”.

E não se referiu, ou quase não se referiu, a estas e outras personagens negras porque torceu o que leu. A verdade é que ambos os romances estão repletos de passagens valorizadoras dos negros, fossem eles escravos ou não. Isso é revelado nas suas acções, nos seus pensamentos, e por vezes dito de viva voz ou colocado na mente de personagens brancos. Em Uma Fazenda em África, por exemplo, o caçador Peter von Sternberg assume que “quanto mais conhecia os africanos, mais os valorizava. A comiseração e o desdém que os civilizados tinham pelos selvagens, e que ele também tivera quando viera para África, ia-se gastando dia após dia, dando lugar à simpatia e à identificação”.

Outra suposta fonte de desigualdade que a investigadora Rendeiro foi desencantar naquilo que ela supõe ser a minha ideologia lusotropicalista diz respeito ao sacrifício e à morte. Escreveu a investigadora que nos meus romances os negros sacrificam as vidas para salvarem brancos, mas que o inverso não acontece, deixando implícito que isso implicaria uma moral e uma hierarquia de natureza racial (p. 28). Há nesta afirmação uma pequena deturpação porque, na verdade, Clarice não sacrificou a vida para salvar um branco. A sua morte não resultou de um sacrifício voluntário, mas de um acidente no decorrer de uma luta. Mais significativo, porém, do que essa leve deturpação é a falha de compreensão. Margarida Rendeiro não percebeu que Clarice, que em Do Outro Lado do Mar protege Vasco Lacerda, e acaba por morrer por isso, o fez por amor a esse médico. E o mesmo se passou com Kpengla, a amazona do Daomé, personagem importante de Uma Fazenda em África, que se sacrifica por Benedita, não por ela ser branca ou superior, mas porque a ama. Essa nuance de amor homossexual — que é o prolongamento ou a projecção do amor que, no Daomé, ligara Kpengla a Adadine, uma outra amazona — escapou inteiramente a Margarida Rendeiro. Escapou-lhe, também, que foi igualmente por amor que Peter von Sternberg, um branco, arriscou várias coisas, entre as quais a própria vida, para salvar a negra Kpengla.

Aliás, várias coisas lhe escaparam, em particular as que remetem para a História, fazendo com que a investigadora tropeçasse aqui e ali nos factos e na cronologia. Rendeiro insurgiu-se por eu não explorar em Do Outro Lado do Mar “qualquer ideia que tenha que ver com o facto de os antigos senhores terem sido indemnizados enquanto os escravizados nada receberam, para além da proclamada liberdade” (p. 26). Ou seja, como acontece com a generalidade das pessoas woke, a investigadora Rendeiro lançou-se de cabeça a falar de coisas que desconhece. Em primeiro lugar, no mundo luso-brasileiro, ao contrário do que viria a acontecer, depois de 1834, entre britânicos, suecos, franceses, dinamarqueses, holandeses, os senhores não foram indemnizados monetariamente. Em segundo lugar, esse tema das indemnizações aos escravos (ou seus descendentes) é uma problemática ou um objectivo político da nossa época, não das pessoas que viviam em 1833-34 e, por isso, não tem de ter lugar num romance histórico passado nesses distantes anos do século XIX. Se tivesse lugar seria um anacronismo tão grande como pôr os personagens desse romance a dizer “eh pá” ou “fixe, meu”.

Há outros tropeções de Margarida Rendeiro na História, nomeadamente os que se prendem com a Revolta dos Malê que a investigadora supõe, erradamente, que eu não quis nomear, ignorando, ao que parece, que houve, nas primeiras décadas do século XIX,  várias revoltas de escravos na Bahia, e que uma delas, a dos Malê, ocorrida em 1835, nada tem a ver com o meu romance nem poderia ser nele nomeada, pois a minha narrativa termina em 1834. A investigadora disse também, a propósito de revoltas e outras formas de resistência dos escravos, que não falo nelas com o rigor histórico com que dou conta da história pública portuguesa (p. 33). Ora, sobre isso há que dizer que é natural que se deem com mais detalhe acontecimentos ou cenas passadas no âmbito europeu porque estão muito mais documentadas do que a vida no interior de comunidades africanas, desconhecedoras, em muitos casos, da escrita. Com que rigor histórico quererá Margarida Rendeiro que os meus romances descrevam um quilombo se os escravos fugitivos que se refugiavam nesses aldeamentos não nos deixaram o seu testemunho? Ainda assim é falsa a sua acusação de eu só ter referido o termo “quilombo” para o definir de relance, em nota de autor, como “esconderijo de escravos fugitivos” (p. 35), pois em Do Outro Lado do Mar há uma descrição extensíssima da fuga de um escravo e do que era a vida no interior de um quilombo. Não será o quilombo politicamente correcto de que a investigadora Rendeiro gostaria que fosse, mas é um tipo de comunidade que existiu de facto, no México, no Suriname holandês ou na Jamaica, onde os habitantes dos quilombos compravam, vendiam e possuíam pessoas e eram caçadores de escravos fugitivos não apenas na própria ilha, mas também noutros locais onde os seus serviços fossem requisitados. Além disso, ajudaram a combater revoltas escravas, razão pela qual eram odiados por uma parte da população negra e adequadamente conhecidos como “the King’s Negroes”. Práticas em tudo idênticas foram seguidas noutros núcleos de foragidos como, por exemplo, na ilha de São Domingos ou no Brasil.

Aliás, é um bocado ridículo que eu seja censurado por não tratar suficientemente o problema dos quilombos, das revoltas ou outras formas de resistência escrava, quando essa é uma questão que tenho abordado frequentemente nos últimos 20 anos, não apenas em romances e artigos de imprensa, mas sobretudo na minha produção historiográfica. Margarida Rendeiro está, nessa área, a pregar a um convertido. É que eu comecei a escrever sobre isso no já distante ano de 2006. O livro que então escrevi viria, depois, a ser traduzido e publicado em Nova York e Oxford, em 2010, dando origem a um debate com vários outros historiadores, e foi republicado aqui em Lisboa, com o titulo de Revoltas Escravas, em 2021. Rendeiro, que neste seu estudo, e para tentar fundamentar as suas tendenciosas interpretações, recorreu à minha tese de doutoramento e a outros trabalhos académicos, e a textos que escrevi em jornais, decidiu ignorar olimpicamente os meus escritos sobre quilombos e revoltas escravas porque, se não os tivesse ignorado não poderia tentar passar a ideia de que eu não tinha em consideração a oposição de muitos negros à violência do sistema escravista.

Em suma, ainda que seja apresentado sob a forma de crítica literária ou de estudo académico, o texto de Margarida Rendeiro é, sobretudo, uma maneira de tentar intervir nos debates travados em torno da memória e da reescrita da história colonial portuguesa. Trata-se, todavia, de uma intervenção enviesada e suspeito que tingida de má-fé. No que à questão literária de fundo diz respeito, o que importa aqui sublinhar é que a investigadora Rendeiro considerou, reproduzindo uma apreciação do historiador Miguel Bandeira Jerónimo a respeito da minha tese de doutoramento, que Uma Fazenda em África e Do Outro Lado do Mar  enfermam de “uma abordagem que simplifica as complexidades do mundo colonial e os contributos da resistência (dos escravos)” (p. 39). Nesses romances, segundo afirmou, essa resistência reduzir-se-ia a momentos “sem resultados” (p. 39). Ora, deixem-me ver se percebi bem: os meus romances mostram que a resistência dos escravos no mundo luso-brasileiro foi infrutífera? Óptimo, então, pois foi exactamente isso que aconteceu. A emancipação dos escravos não resultou da sua resistência. Mas Margarida Rendeiro verificou, com horror, que, nos meus romances, o que sobressai é a perspectiva europeia “que permite considerar uns civilizados e outros selvagens”, e acrescentou que essa foi a perspectiva que “de facto, prevaleceu no espaço público no século XIX”, de forma a legitimar aquilo que então se designava por “pacificação” e por “missão civilizadora” (p. 39). E eu repito: óptimo, então. Quer dizer que os meus romances são fiéis ao espírito desse tempo e não a uma qualquer lengalenga politicamente correcta que agora esteja na moda. Quando escrevo um romance passado no século XIX não me guio pelo que Margarida Rendeiro e os seus correligionários pensam, em 2024, acerca de África, dos africanos, da escravatura, etc. Guio-me e interesso-me pelo que as pessoas daquela época pensavam e faziam. Que a investigadora Rendeiro e os outros woke não percebam ou não queiram perceber isto, e considerem  que eu sou um espírito oitocentista que escreve romances “coloniais” porque perfilho essa concepção do mundo, é algo que diz mais acerca deles do que de mim. Em 2017 escrevi Vento de Espanha, um outro romance histórico que se passa na Península Ibérica no tempo da Guerra Civil Espanhola e cuja protagonista é uma mulher do Partido Comunista Português. Pois o retrato que fiz dessa mulher, dos seus sentimentos, das suas opiniões e do mundo em que se movia, bastou para que, aos olhos de alguns leitores, eu, que sou assumidamente de direita, fosse acusado de ser pró-soviético, acusação que encaro com sentido de humor, mas também algum orgulho pois ela significa que a minha construção de figuras como a dela terá sido bem conseguida, muito autêntica e convincente. Que Margarida Rendeiro agora me julgue lusotropicalista e nostálgico do império colonial português porque personagens de romances meus passados no século XIX dizem que África era “terra de selvagens” (p. 11) e frases análogas é algo de equiparável à avaliação dos que, lendo Vento de Espanha, me situaram na extrema-esquerda, e é, parece-me, um bom sinal quanto à verosimilhança e à solidez histórica desses romances. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 25 de Outubro de 2024).