Cloaca Maxima
Cloaca Maxima era o nome do grande sistema de esgotos da antiga Roma, que foi acompanhando o crescimento populacional e espacial da cidade desde os tempos da Monarquia, quando os romanos ainda não se haviam lançado à conquista do seu império. Recebia as águas dos pântanos e os dejectos e imundícies de toda a parte da urbe, da esquerda e da direita, e despejava-os no Tibre.
No último sábado José Pacheco Pereira assinou um artigo no Público, a que deu o título de “A cloaca”. Nesse artigo listou uma série de palavras ou frases insultuosas que lhe foram dirigidas no Facebook. A gente de esquerda, compreensível e justificadamente indignada, partilhou profusamente esse artigo, apontando o dedo especificamente ao partido Chega — como, aliás, Pacheco Pereira também havia feito. Assim, e à laia de mero exemplo, de mero apanhado ao acaso de pessoas de esquerda que considero e que são manifestamente razoáveis, pude ler Vítor Serrão a insurgir-se contra os “novos bárbaros” e a “campanha das extremas-direitas organizadas sob o signo do insulto fácil”; João Soares (transcrevendo uma frase de Teresa Mónica) a falar em “canalha pavorosa”; Irene Pimentel a referir-se a “comentários de esgoto” e a querer que se “acabe com as caixas de comentários (na Comunicação Social)”; etc.
Partilho essas considerações de reprovação, esse sentimento de repulsa, mas estranho — e lamento — que, tanto quanto me lembro, nenhuma figura de esquerda tenha elevado a sua voz contra as pessoas da sua área política, em particular de extrema-esquerda, que escrevem há anos, nas redes sociais, coisas perfeitamente análogas ou piores do que esta suposta gente do Chega agora escreveu sobre José Pacheco Pereira. Eu que desde 2017 tenho sido alvo de injúrias e acusações difamatórias metódicas e continuadas, para as quais já chamei por diversas vezes a atenção dos leitores — ver, por exemplo, aqui, aqui ou aqui —, fui fazendo, por curiosidade de investigador e por necessidade de defesa, um pequeno arquivo a que agora poderia lançar mão para demonstrar o que afirmo e fazer uma lista semelhante à que Pacheco Pereira divulgou no Público, mas desta vez com gente de esquerda. Suponho, porém, que isso seria cansativo para os leitores.
Foco-me, por isso, num caso paradigmático, o de Mamadou Ba, que foi, como é sabido, militante do Bloco de Esquerda. As publicações desse activista no Facebook são públicas e ao contrário do que acontece com estes supostos simpatizantes do Chega que José Pacheco Pereira trouxe a lume e que, como o próprio escreveu, não são assim tantos e têm apenas meia dúzia de seguidores, os que seguem e perfilham as opiniões de Mamadou Ba são milhares. Ora que foi ele dizendo a meu respeito? Que minto com desfaçatez e distorço a história com dislate; que sou intelectualmente desonesto e politicamente imbecil; que sou um trovador de senzala e racista de plantão; um escrevinhador de choradeiras; um charlatão que abusa da sua posição académica para endrominar mentes; um coitadito que anda em pânico; um comedor de fezes e produtor de vómitos; a personificação da indigência intelectual e moral de uma certa elite portuguesa, racista e misógina; etc.
Ora, Mamadou Ba nunca foi censurado e execrado pelas pessoas de esquerda nos termos em que agora o fazem face aos escritos de supostos simpatizantes do Chega e do PSD que visam José Pacheco Pereira. Porquê? Por ser negro e do Bloco? Por ser “dos nossos” e contra “os deles”? Não pensem, porém, que fui o único a ser alvo dos elogios do senhor Ba, pois ele visou e visa, nos mesmos termos, muitas outras pessoas de direita ou tidas como tal. José Rodrigues dos Santos, por exemplo, seria, segundo ele, “um fascistazinho”, “um reles escritor”, “um marialva de meia tigela”. E como Mamadou Ba houve e há muita gente de extrema-esquerda a verter ódio no Facebook e no X, com a agravante de que alguns deles são professores universitários — sim a cloaca de esquerda vai até aí. Os seus escritos são públicos, estão ao alcance de qualquer um, mas as pessoas razoáveis de esquerda têm um qualquer prurido em apontá-los, verberá-los, condená-los. Só têm olhos para a cloaca de extrema-direita — que, sim, existe e é mal-cheirosa —, quando a cloaca de extrema-esquerda não é melhor, em certos casos até é pior e ainda mais fétida.
Na verdade, não estamos perante “A cloaca (do Chega)”, mas de uma Cloaca Maxima que recebe lixo de ambos os lados e que esteve escondida, submersa, devido à inexistência das redes sociais. O aparecimento dessas redes veio expô-la à vista de todos, como um esgoto a céu aberto que efectivamente é e que nos coloca uma dificuldade: a de expor ideias e convicções, e de as debater, numa sociedade em que, tanto à esquerda como à direita, há gente que usa o insulto e a difamação para suprir a falta de argumentos. Como não sou partidário da censura e de conceitos politicamente esponjosos e perigosos como o de “discurso de ódio”, sei que não posso estancar esses ataques cobardes nem drená-los para um Tibre de que não disponho. O único caminho, salvo melhor opinião, é navegar com esta ondulação cruzada, da esquerda e da direita, manter a rota e esperar que, a pouco e pouco, a razão e o respeito se vão impondo e empurrando para as margens mais desclassificadas da consideração pública a gente que não sabe estar nem dialogar de forma civilizada, seja ela do Bloco, do Chega e de outros quadrantes. Ou seja, não espero que deixe de haver pessoas que me chamem fascista, racista, mentiroso e coisas piores, nem que mimos equivalentes deixem de ser lançados contra José Pacheco Pereira e muitas outras pessoas. Espero apenas que essa gente, que existe, tem nome e está constantemente a verter fel na sombra do Facebook, onde vegeta, continue encolhida e temerosa de se expor num debate em que se exijam argumentos e conhecimentos, e não insultos e graçolas, e que as pessoas de boa-fé percebam a diferença. São essas pessoas que verdadeiramente interessam. O resto é apenas ruído, a tal cloaca do despeito, da intriga, da punhalada na sombra, da má-língua e do mau carácter, agora muitíssimo amplificada pelo efeito das redes sociais, mas com que as pessoas, em sociedade, sempre tiveram de lidar. À esquerda e à direita. Nada de novo debaixo do Sol. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 14 de Julho de 2025).