Brasil, Portugal, escravos: trocando em miúdos

11-08-2022 15:25

O historiador brasileiro Luiz Felipe de Alencastro escreveu, no Público, um artigo sobre o papel do tráfico de escravos africanos na formação do Brasil. O artigo lê-se com proveito, é informativo e esclarecedor, mas algumas das suas passagens podem prestar-se a mal-entendidos e talvez seja vantajoso trocá-las em miúdos, como diria Chico Buarque.

Foi para mim muito inesperado ver o autor afirmar, de forma taxativa, que “o império do Brasil foi a única nação que praticou intensivamente o tráfico atlântico de africanos até 1850”, quando na verdade, a Espanha também o fez, de forma directa ou indirecta, não apenas até 1850, mas até 1867, para Cuba.

Foi, também, surpreendente vê-lo apagar quase por completo os britânicos do processo abolicionista brasileiro (e não só), deixando, nas entre-linhas, a impressão de que o Brasil controlou como muito bem quis o timing e o caminho para a supressão do seu tráfico. Luiz Felipe de Alencastro refere que a “acção diplomática, comercial e administrativa (brasileira) logrou retardar o intervencionismo do Foreign Office e da Royal Navy no Atlântico Sul até 1850”. Estranhamente, não menciona o tratado abolicionista anglo-brasileiro de 1826 — que entrou em vigor em 1830 —, e que permitia alguma forma de intervencionismo, tal como os convénios anglo-portugueses assinados na década de 1810 também o permitiam. Menciona, em contrapartida, a lei abolicionista brasileira de 7 de Novembro de 1831, omitindo, claro está, que ela fora precedida pelo tratado de 1826, do qual era, aliás, uma decorrência. Ora, foi esse tratado, e não uma lei de âmbito puramente nacional e que, para além disso não era cumprida, que deu suporte à intervenção da marinha britânica. Essa intervenção foi-se materializando no Atlântico Sul, tanto quanto os tratados o permitiam, não obstante os esforços brasileiros para a contornar e iludir, e levou ao apresamento de muitos navios negreiros destinados ao Brasil. Importa dizer, também, que a partir de 1849, a intervenção britânica viria a manifestar-se de forma mais musculada a coberto de uma lei britânica para aplicar ao Brasil: o Aberdeen Act. Foi então que os navios negreiros começaram a ser apresados pela Royal Navy não apenas no oceano — como já eram —, mas também nos rios e portos do Brasil, por vezes sob os canhões das fortalezas brasileiras. Só depois disso, em 4 de Setembro de 1850, o governo brasileiro, através do seu ministro da justiça, Eusébio de Queirós, fez publicar “espontaneamente” uma lei que pôs, de facto, fim ao tráfico brasileiro. Em suma, a Inglaterra foi decisiva na supressão do tráfico de escravos para o Brasil, mas está quase omitida no texto de Alencastro, e isso pode dar uma ideia errada do que se passou.

Essa omissão dos britânicos é, aliás, repetida e acentuada na parte final do artigo quando o autor evoca três revoluções que, afirma, “mudaram a História”. Refere-se à Revolução Americana (1776-1787), à Revolução Francesa (1789) e à Revolução de São Domingos/Haiti (1791-1804) e considera que essas revoluções propagavam os “princípios republicanos e abolicionistas”. Não menciona a Grã-Bretanha, no que à propagação dos princípios abolicionistas diz respeito, o que é peculiar e pode provocar outro mal-entendido. É que não foram a França nem o Haiti que mais difundiram as ideias e práticas abolicionistas, mas sim a Grã-Bretanha. Foi ela o principal motor e incentivador das abolições e da acção anti-escravista à escala planetária. Foram o exemplo e o método britânicos que os abolicionistas de todo o mundo quiseram seguir — e geralmente seguiram —, não a via revolucionária da França jacobina ou do Haiti.  

Mas o mal-entendido mais importante diz respeito a Lisboa. De facto, Alencastro escreveu uma frase que o Público isolou e pôs em destaque no cabeçalho do artigo e que, sem estar errada, induzirá, estou certo disso, muita gente em erro. A frase é a seguinte: “Desde os anos 1550, navios portugueses deportam regularmente africanos para o Brasil. Durante a União Ibérica, consórcios de mercadores lisboetas arrematam os contratos de remessas de africanos à América espanhola (Asiento de Negros). Somando-se ao comércio de escravizados destinado ao Brasil, estes novos circuitos atlânticos transformam Lisboa na capital traficante do Ocidente.”

A mensagem central que ressalta desta frase, e que ficará na cabeça de quem não ler mais do que o cabeçalho — ou mesmo de quem ler o texto todo pois não há mais esclarecimentos sobre esse assunto —, é que Lisboa terá sido a “capital traficante do Ocidente”. Ou seja, que terá tido a posição de primazia na história do tráfico transatlântico, o que não corresponde à verdade como já tentei esclarecer no Público e, depois, no Observador. Justificam-se, ainda assim, mais umas linhas a esse respeito.  

Importa em primeiro lugar perceber que ao escrever o que escreveu, na passagem em causa, Luiz Felipe de Alencastro se está a referir, se bem percebi, ao período que começa em 1550 e abarca o da União Ibérica que, como sabemos terminou com a Restauração, em 1640. Ou seja, tudo somado está a reportar-se ao período que vai de meados do século XVI a meados do XVII. E, nesse período, Lisboa foi, de facto, proeminente e a “capital do tráfico”. Mas há duas coisas que não podemos ou não devemos perder de vista: a primeira é que o tráfico efectuado no período em consideração corresponde apenas a 6,5% do tráfico total (seria a partir de meados do século XVII e, sobretudo, nos séculos XVIII e XIX, que o tráfico cresceria muitíssimo, como quem consultar a Trans-Atlantic Slave Trade Database poderá facilmente verificar); a segunda coisa a ter em conta é que a partir de meados do século XVII os contratos para fornecimento de escravos às Américas espanholas (Asientos) escaparam aos portugueses e passaram para outras mãos, acabando por ir parar às dos ingleses. Lisboa perdeu o papel de proeminência que tinha tido, foi ultrapassada por outras cidades, como Liverpool, por exemplo, e passou a ter um papel secundário ou, até, residual, num tráfico que florescia noutros pontos da Europa ou que corria directamente entre o Brasil e a costa de África. Como já referi num outro texto, dos séculos XVI a XIX 37% das viagens dos navios negreiros iniciaram-se no Brasil, 31% na Grã-Bretanha e apenas 3,8% no território europeu de Portugal. Num cômputo geral foram o Rio de Janeiro, Salvador da Bahia, Liverpool e outras cidades — não Lisboa — que tiveram a odiosa “distinção” de ser as capitais traficantes do Ocidente.

Uma nota final para dizer que, no que toca ao tráfico transatlântico de escravos, poderá ficar em quem ler este artigo de Luiz Felipe de Alencastro — mesmo não sendo essa a intenção do autor — a ideia de simbiose entre o Brasil independente e Portugal, ou seja, a ideia de que os problemas, objectivos e interesses eram comuns, de que as políticas de ambos os países eram convergentes e de que o que se afirma a respeito de um é igualmente válido para o outro. Não é assim. A partir da independência brasileira, as políticas portuguesa e brasileira quanto à supressão do tráfico começaram a divergir e, do final da década de 1830 em diante, tornaram-se mesmo antagónicas e contenciosas. No que ao tráfico diz respeito, Portugal e o Brasil independente não são exactamente farinha do mesmo saco. - (publicado pela 1ª vez in Público, 11 de Agosto de 2022).