Aula prática de escravatura (em árabe)

10-07-2017 18:41

Aqui há uns anos, 8 princesas de uma das mais poderosas famílias dos Emirados Árabes Unidos
hospedaram-se num hotel de luxo em Bruxelas. Ocuparam um andar inteiro pois traziam consigo alguma da sua prole, vários guardas e 23 mulheres, a maioria das quais africanas, para as servirem durante o longo tempo em que ali iriam permanecer. Um dia uma dessas serviçais arranjou forma de contar o seu quotidiano à polícia belga. A subsequente investigação revelou que as ditas 23 mulheres eram obrigadas a trabalhar em condições próximas da escravidão. As princesas árabes tinham-lhes apreendido os passaportes e quase não as remuneravam pelo seu trabalho, que podia ser exigido a qualquer hora do dia ou da noite; forçavam algumas delas a dormir no chão, à porta dos seus quartos, para que as atendessem prontamente, enquanto as
restantes ficavam ao monte, numa única divisão; as 23 mulheres eram, por vezes, espancadas, comiam apenas o pouco que sobrava das refeições das suas senhoras e estavam proibidas de abandonar aquele piso do hotel, ou seja, estavam aprisionadas.
A justiça belga tardou a julgar o caso mas há poucos dias chegou, por fim, a um veredicto: as princesas foram consideradas culpadas de tráfico de seres humanos e de terem sujeitado
pessoas a um tratamento degradante. O tribunal considerou-as moralmente responsáveis por uma forma de esclavagismo moderno, e condenou cada uma delas a uma multa pecuniária e a 15 meses de prisão com pena suspensa, para além de indemnizações às vítimas.

Esta história - que está longe de ser caso único - foi pouco comentada em Portugal. Dos jornais diários, julgo que só o DN a divulgou. A notícia suscitou a indignada reacção de muitos dos seus leitores, mas, infelizmente, não ecoou junto daqueles que não costumam deixar passar em claro as situações de discriminação ou de maus tratos a africanos, nem dos que se mobilizam para exigir a Portugal um pedido de desculpa pelo seu envolvimento em formas há muito desaparecidas de escravatura. Desta vez, e tanto quanto posso avaliar pelo que me vai chegando, optaram por não se pronunciar. O que é pena, pois nunca é de mais lembrar, a quem lê, que escravatura não é apenas a que foi praticada pelo homem branco em tempos idos e em contexto colonial. É útil partir deste triste exemplo das princesas árabes para mostrar, como se fosse uma aula prática, que o estado de escravidão, o tráfico de seres humanos, o trabalho forçado, eram e continuam a ser problemas universais porque houve e há pessoas de todos os credos e cores que, tendo possibilidade para tal, escravizam outras. Isso, que era verdade no passado, ainda o é agora, pois a escravatura continua a praticar-se em várias regiões do mundo, nomeadamente em países islâmicos. Foi, portanto, pena que os que se interessam pelo problema da escravatura, seja qual for o ponto de vista - histórico, sociológico, político, humanitário -, não tivessem aproveitado esta ocasião para lembrar às pessoas menos informadas ou mais desatentas que o anti-escravismo e o anti-racismo devem acender as luzes vermelhas em todas as situações de apropriação dos outros, de exploração extrema e de discriminação, e não apenas quando se
trata de condenar acções passadas (ou presentes) dos povos ocidentais - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez no Diário de Notícias, 10 de Julho de 2017).