Assunção Cristas e o sacrifício

05-06-2016 23:33

Alguns dos que desejam que o Estado continue a financiar colégios particulares em zonas onde já existem escolas públicas têm-nos brindado com argumentos que oscilam entre o absurdo e o descarado. Ainda há poucos dias tentaram extrair dividendos de uma reunião no Palácio de Belém, sugerindo que o Presidente da República apoiava as suas posições, e fizeram outro tanto com um documento técnico do Tribunal de Contas. Mais recentemente, e como que a coroar esses exercícios de desfaçatez, Assunção Cristas veio defender que, uma vez que o dinheiro do Ministério da Educação não chega para tudo, algumas escolas públicas deveriam abster-se de abrir turmas destinadas à população escolar da sua zona, para que os colégios particulares dessa zona pudessem continuar a fazê-lo e a receber o maná do erário público. Ou seja, a líder do CDS quer que a escola pública seja "sacrificada" - foi a palavra que usou - para que continue a haver subsídios estatais aos privados.

Os contratos de associação, com esse ou outro nome, são uma velha prática da história humana. Na Roma Antiga, no Portugal das Descobertas e em muitas outras circunstâncias históricas, o Estado entregou a privados aquilo que não conseguia ou não queria fazer. Contudo, essa
entrega dependeu sempre da necessidade e da vontade do contratador, ou seja, do próprio Estado. Foi essa vontade e uma óbvia necessidade social que levaram à celebração dos contratos de associação com colégios privados que agora se discutem. Mas o que dantes se justificava agora nem sempre se justifica porque, entretanto, o Estado alargou a sua rede escolar. Por isso, os argumentos de necessidade e de vontade do contratador caíram, pelo menos parcialmente. Em
consequência, os defensores da continuação de subsídios aos colégios privados foram forçados a recorrer a outras justificações, como a da "liberdade de escolha" ou a da (suposta) "superioridade do privado face ao público", para tentar perpetuar a situação. E, assim, de argumento em argumento, de recuo em recuo, chegaram, pela voz de Assunção Cristas, à ideia de "sacrifício", a palavra mágica, o "abre-te Sésamo", da actual direita portuguesa. É muito significativo verificar que, neste transe do ensino particular e com Assunção Cristas ao leme, reaparece a concepção que orientou a acção dos governos PSD-CDS de 2011 a 2015, ou seja, que o que é público e estatal tem de se "sacrificar" para que os privados possam sobreviver e lucrar. O "sacrifício" não foi, portanto, uma coisa circunstancial, imposta pela Troika e pelos apertos de 2011. É, isso sim, uma convicção profunda, o âmago de todo um programa político.

Eu podia limitar-me ao âmbito deste debate sobre os estabelecimentos de ensino e rebater ponto por ponto a recente proposta de Assunção Cristas. Mas julgo que o que mais importa é olhar para o futuro e assinalar, como quem põe um sinal de perigo na estrada que temos pela frente, que as
afirmações de Assunção Cristas revelam, de forma cristalina, a verdadeira agenda da direita que nos governou até há poucos meses e que anseia por voltar a governar-nos. De facto, nunca como nesta questão dos colégios tinha ficado tão patente o seu propósito de encolher o Estado em favor de interesses particulares. Nunca tinha ficado tão nítido o seu intuito de fazer do Estado uma espécie de mega-fundação destinada a conceder subsídios ao negócio privado. Tudo isso
Assunção Cristas veio assumir, sem véus, sem meias-palavras, com um atrevimento quase enternecedor.

Se eu tivesse metade desse atrevimento poderia perguntar-lhe se quer que continuemos a pagar os nossos impostos ao Fisco, como até aqui, ou se advoga que, para poupar na burocracia, os entreguemos directamente à iniciativa privada, seja laica seja religiosa? Mas como não sou
tão atrevido limito-me a repetir que o ensino particular deve ser respeitado e pode, até, ser ajudado, na medida do possível, mas não constitui uma responsabilidade estatal. A responsabilidade do Estado é a de alargar a rede de ensino e melhorar a qualidade e a eficácia da escola pública para todos. É isso que lhe compete e é isso que exijo dele - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Diário de Notícias, 5 de Junho de 2016).