As praxes da nossa complacência

13-02-2014 10:11

Muito tem sido dito sobre as praxes. Eu - assumo-o desde já - sou contra elas e a
maior parte das vozes que ouvi ou li manifesta-se no mesmo sentido. Esta última
semana, porém, emergiram opiniões contrárias, vindas sobretudo de estudantes e
de órgãos dirigentes das universidades. Perante elas, a pergunta que coloco a
mim próprio é a seguinte: qual o quadro de pensamento das pessoas que acham
legítimo e divertido coagir e humilhar colegas recém-chegados, defendendo que
isso serve para os integrar? As reportagens sobre o que alguns dos envolvidos pensam sobre o assunto fornecem pistas para responder a essa pergunta. Segundo um estudante do Instituto Superior
de Agronomia, ouvido pelo i, "as praxes não são más à partida" mas são como
tudo na vida: "há boas e más pessoas a praxar, como há bons e maus professores
ou médicos". Ora, há aqui uma grande confusão. Médicos e  professores são absolutamente vitais para o
funcionamento das nossas sociedades e para a saúde e bem-estar de cada um de
nós, individualmente considerado. Sendo imprescindíveis, temos de aceitar que,
entre eles, possa haver alguns menos eficientes ou competentes. As praxes, pelo
contrário, não fazem parte integrante ou imprescindível das nossas vidas nem
sequer do mundo universitário. Mas o estudante em questão fala como se fizessem
e, mais do que isso, fala como se constituissem parte da ordem natural das
coisas ou da organização útil do mundo, o que me deixa perplexo porque
significa que já as interiorizou como uma componente do horizonte social, uma inevitabilidade
da vida.

Também me deixa perplexo que um outro estudante, referindo-se à tragédia do Meco, diga
que nada de grave ou perverso poderia ter ocorrido naquela situação porque os
códigos das praxes não o permitem. Será que este estudante ignora que os códigos
- todos eles - são frequentemente esquecidos ou violados?

Se este tipo de opiniões for representativo do que pensa a maioria dos estudantes
que participam nestas cerimónias, então estamos perante gente muito ingénua e
os legisladores devem intervir para reforçar a sua protecção. Praxes que deixam
a segurança e a vida dos outros na mão de pessoas sádicas ou pouco previdentes,
têm que ser proibidas ou fortemente restringidas. O estado não se coíbiu de
legislar sobre segurança rodoviária, proibindo o consumo exagerado de alcool
para os condutores ou forçando-os a usar cintos de segurança. Também não se
coibiu de proibir o fumo em ambientes fechados. E, tanto num caso como no outro,
fê-lo contra os interesses envolvidos porque considerou que estava em causa a
segurança e a saúde das pessoas. Que esperam, por isso, os nossos complacentes deputados
para actuar no mesmo sentido relativamente às praxes?

Dir-se-á que são práticas coloridas que já vêm das universidades medievais. Pois vêm. Faziam
parte de um mundo onde também havia execuções públicas e outras simpáticas
tradições de que entretanto nos livrámos. E não fortalecerão elas a união e o
espírito de corpo? Talvez sim. Mas isso é coisa que seja necessária numa
universidade? As universidades, serão, por acaso, o aquartelamento de algum exército
pronto para o combate? Não, são apenas um sítio onde a pessoa aumenta os seus
conhecimentos (e não me consta que isso se consiga a andar de gatas ou a beijar
o focinho de porcos). E não serão as praxes divertidas? Não, não são, bem pelo
contrário. Eu gostava que a nossa população universitária estivesse próxima do
humor inteligente e sofisticado de um Woody Allen, por exemplo, e vejo, com
pena, que parte dela parece mais perto daqueles filmes mudos em que os
personagens atiravam bolos à cara uns dos outros, ficando todos sujos e
magoados. Desculpem colocar as coisas de uma forma tão terminante mas, no
fundo, o que está aqui em causa é uma questão de sensibilidade e de maturidade
e é para mim muito inquietante que jovens adultos, com idade para votar e para
casar, achem divertido despejar baldes com excrementos na cabeça dos mais novos
ou inexperientes. A falta de imaginação que tudo isto revela, só é ultrapassada
pelo enorme abuso e mau gosto da coisa. João Pedro Marques (Publicado pela 1ª vez em Jornal i, 13 de Fevereiro de 2014).