As palavras amargas de Eliane Brum

01-12-2025 16:29

O Brasil tem coisas extraordinárias em áreas tão vastas e diversas que vão da culinária às artes ou às ciências. Teve e tem, também, figuras históricas admiráveis em todos os campos da actividade humana, de José Bonifácio a Chico Buarque. Mas ao mesmo tempo que tem dado ao mundo coisas e gente de nível superlativo, o Brasil tem, nas últimas décadas, exportado para esse mundo, sobretudo para Portugal, uma irritante conversa a que podemos apropriadamente chamar queixume brasileiro. Em que consiste esse queixume que aqui nos chega pelas vozes e mãos de artistas, jornalistas, políticos e intelectuais sortidos residentes nesse, ou provenientes desse, país tropical? Na acusação e culpabilização sistemáticas dos antigos portugueses e do Portugal de há 200, 300 ou 400 anos por algumas das dificuldades, injustiças e desequilíbrios da actual sociedade brasileira.

O livro que, com o patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian, acompanha a exposição “Complexo Brasil” contruiu-se em parte, infelizmente, em torno desse queixume. No meu anterior artigo contestei certas vertentes da maneira como José Miguel Wisnik, o curador da exposição, pensa Portugal e os portugueses no contexto da história da escravatura. De todo o modo, no final do texto que assina nesse livro, Wisnik afirma que “mais que tudo, Complexo Brasil quer ser um encontro da gente brasileira com a gente portuguesa, (…)”. Parece todavia uma péssima ideia e um mau cartão de visita de quem quer promover esse “encontro” que se entre em casa do anfitrião português a invectivar os seus pais ou avós. Não será no mínimo de mau gosto vir a um país, para aí viver ou para expor um trabalho, e trazer na mão direita um saco cheio de acusações aos habitantes desse país ou aos seus antepassados?

A mais recente rajada de amargas e corrosivas acusações saiu da escrita de Eliane Brum. Essa jornalista, a mais premiada da história do Brasil, escreveu, no livro que acompanha a exposição que pode ser vista na Gulbenkian, um texto a que deu o título de “Carta de desfundação do Brasil dirigida aos descendentes dos súbditos do rei Dom Manuel I”. O principal objectivo dessa “Carta” é pedir ajuda aos portugueses para salvar a Amazónia e tudo o que ela contém e representa. Como aí se afirma, “precisamos de vocês, descendentes dos invasores, para barrar a destruição dos brasis”. Todavia, ao mesmo tempo que pede com uma mão, esbofeteia com a outra. De facto, Eliane Brum responsabiliza os portugueses contemporâneos, a quem pede auxílio, pelas consequências negativas da colonização portuguesa, como sejam a apropriação de terras indígenas e a escravidão. É certo que na perspectiva da jornalista os nossos antepassados não são os únicos réus.  Espanhóis, ingleses e franceses também “carregam a responsabilidade coletiva sobre tudo o que veio depois (da sua chegada às Américas)”, mas, como brasileira — e ainda que na parte final do seu texto também acuse de racismo e desumanidade as comunidades brancas de origem alemã ou italiana que povoam o sul do Brasil e a gente que incendeia a Amazónia —, é sobretudo e em primeiro lugar sobre os portugueses que incide o seu ataque. Escreve Eliane Brum o seguinte: “O que os homens portugueses começaram a fazer aqui tão logo colocaram as suas botas e seus corpos infetados no ventre de areia das praias, seus pénis sifilíticos nas vaginas das mulheres originárias, foi construir ruínas”. Esta visão medonha do colonizador português e da sua relação com os indígenas é o exacto inverso da imagem elogiosa e benevolente da gente portuguesa que José de Alencar nos propôs no extraordinário romance que é O Guarani, publicado pela primeira vez em 1857. Isto mostra bem o abismo que separa o romantismo do século XIX do actual wokismo acusatório e retaliador que fervilha sob os nossos pés.

Essas características do wokismo conduzem desde logo à falta de boas maneiras a que aludi acima. Tudo no texto de Eliane Brum é extremo e violento, tudo vem carregado de acusações e de culpabilidade. A jornalista vê a gente branca, da qual faz parte, como “seres horrendos que corrompem o mundo”. Porém, o seu texto dá um passo mais e avança para a ideia nazi da culpa colectiva. Brum reconhece que “individualmente, cada português não é culpado pelo que seus antepassados fizeram. Como seriam, se nem estavam vivos naqueles anos? Mas coletivamente, sim, são responsáveis. Se aceitaram as benesses que vieram com o que os antepassados fizeram, o pau-brasil e o ouro ensanguentado que construíram os seus monumentos, as heranças coletivas, temos que aceitar coletivamente a responsabilidade por seus assassinatos”.

Ora isto, para além de wokista e hitleriano, é pueril. Dado que as sociedades humanas minimamente complexas não nasceram ontem, mas sim há milénios, e que também desde há milénios foram interagindo por meio de relações de aliança, domínio e submissão, todos nós beneficiamos ou carecemos de milhares de coisas. A jornalista Eliane Brum, por exemplo, beneficia do facto de ter nascido no século XX, no mundo ocidental, e não no Afeganistão, onde a condição das mulheres é a que se sabe. Deverá renunciar a esse benefício e emigrar para Cabul onde começará a usar burca? E, não querendo ser tão radical, deverá despojar-se de tudo aquilo de que usufrui ou usufruiu — das roupas que veste à comida que ingere — que tenha sido obtido ou fabricado com alguma dose de injustiça e violência para que, inteiramente nua e purificada, possa regressar a pé descalço ou a nado a um passado imaginário, a um Jardim do Eden, onde não havia sombra de pecado?

É justo reconhecer que Eliane Brum não se esquiva a esses dilemas e toma sobre si uma quota parte das dívidas: “Eu, mulher branca, descendente de imigrantes italianos esfomeados também carrego a minha (responsabilidade)”. Logo de seguida a jornalista assume, também, o seu privilégio por ser branca, facto que, segundo diz, lhe permite ter melhor educação, assistência médica, alimentação, residência, salário, ter menos probabilidade de ser violada e  assassinada, de morrer de parto e de passar horas do seu dia “num transporte público entupido de corpos”. De forma coerente já havia decidido militar em favor dos indígenas e ir viver para a Amazónia, um mundo mais de acordo com o seu pensamento que enaltece as qualidades reais ou imaginadas de ecologias extintas ou ameaçadas, e condena a mão civilizada que as trucidou ou lhes causou dano. Mas a jornalista brasileira não pode levar a mal que o comum dos mortais prefira viver em Nova Iorque ou em Roma sem que essa preferência faça dele uma má pessoa ou um culpado do esmagamento de outros modos de vida.

Nem pode também levar a mal que lhe diga que para lá de pueril e primitivista, o seu pensamento tem vertentes completamente absurdas. Uma delas é o nexo de causalidade que pretende estabelecer entre as devastações e brutalidades levadas a cabo pelos descobridores e primeiros povoadores portugueses, e o que actualmente se passa no Brasil. Os brasileiros são inteiramente independentes há 200 anos. Repito e sublinho: 200 anos. É quase inacreditável que haja entre eles quem, dois ou mais séculos passados, ainda se queixe dos antigos colonizadores. Seria como se, no Portugal de meados do século XVI, no reinado de D. João III, por exemplo, as gentes considerassem que os problemas vividos pelos portugueses dessa época ainda eram culpa dos tártaros que, em meados do século XIV, usando técnicas arcaicas de guerra biológica, catapultaram cadáveres empestados para dentro das muralhas de Cafa, na Crimeia, assim fazendo com que os genoveses, que comerciavam com essa cidade, levassem a Peste Negra — e os ratos e as pulgas que a propagavam — nos seus navios e a espalhassem inadvertidamente pelos reinos europeus — Portugal incluído — onde teve efeitos catastróficos, pois terá matado um terço ou mais da população do continente. Ou, então, seria como se os portugueses actuais fossem a Paris barafustar e rasgar as vestes por muito do que aconteceu em termos de perdas e danos, durante as invasões francesas do século XIX, cujas consequências directas e indirectas acabaram por ser terríveis para Portugal — e curiosamente muito positivas para o Brasil que passou a ser a sede do governo, viu a abertura dos seus portos ao comércio externo e que, a curto prazo, se tornou independente. Essas queixas portuguesas foram resolvidas na época pelos tratados de 1814 e 1815, assim como as nossas pendências com o Brasil foram resolvidas pelo tratado de 1825. Que passados 200 anos venha gente brasileira tecer um rol de acusações aos portugueses que por lá andaram há séculos está entre o absurdo e o patético.

Claro que Eliane Brum pode dizer e escrever todos os disparates que lhe passarem pela cabeça e pode fazê-lo com a amargura e agressividade que quiser. Como ela mesma confessa, não separa o corpo da mente e a escrita “vem toda das (suas) entranhas”. Não é isso que inquieta. O que é preocupante é a propensão de muitos portugueses — como ainda há pouco se viu em Luanda com o próprio Presidente da República —, para assumirem e interiorizarem estas culpas ou supostas culpas históricas, mesmo quando, como é o caso do texto da jornalista brasileira, elas vêm embrulhadas no inaceitável e indefensável conceito de culpa colectiva.

Outra coisa preocupante, pelo impacto que tem na formação da opinião pública, é a deriva woke da Fundação Calouste Gulbenkian que, aliás, não é de agora. Há cerca de ano e meio, a Fundação levou a cabo um curso destinado a professores do ensino básico com os objectivos explícitos de desconstruir “preconceitos” supostamente “enraizados na memória pública portuguesa” acerca do “papel de Portugal no comércio de escravos” e de “apresentar abordagens alternativas”. Para atingir esses objectivos convidou formadores do Museu Smithsonian de História e Cultura Afro-Americana, uma instituição claramente woke, e serviu-se, também, da prata woke da casa, convidando entre outras pessoas, a socióloga e activista Cristina Roldão, cujo fito de alterar o ensino e os manuais escolares da disciplina de História num sentido flagelante e politicamente correcto é assumido e sobejamente conhecido.

Critiquei logo na altura essa iniciativa da Fundação, mas a minha crítica caiu em saco roto. Renovo-a através deste e do meu anterior artigo e deixo duas perguntas: o Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian, actualmente presidido por António Feijó, estará bem ciente deste rumo wokista? Será por aí que, de facto, quer ir? A Fundação esclarecerá se assim o entender. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 1 de Dezembro de 2025).