As boas intenções
O sociólogo moçambicano Elísio Macamo veio recentemente a Portugal para participar numa mesa-redonda em Braga e, no caminho para esse evento, teve ocasião de falar com um jovem condutor de taxi e um recepcionista de hotel portugueses. Ambos se lançaram, sem que Macamo lho pedisse, a fazer um retrato de Moçambique e um diagnóstico dos seus problemas, a que se seguiu a receita que, segundo eles, os moçambicanos deveriam seguir para que o seu país andasse para a frente. O sociólogo viu nisso uma espécie de paternalismo, o que poderá ser aquilo a que os ingleses chamam jumping to conclusions pois o que aparentemente se passou não implica necessariamente uma hierarquia ou uma desvalorização do interlocutor. É exactamente o que muitos portugueses fizeram quando, a respeito do Brexit, tentaram explicar aos britânicos o que melhor lhes convinha. Ou, então, quando tentaram demonstrar aos norte-americanos por que razões nunca deveriam votar em Donald Trump. E estes exemplos podiam multiplicar-se indefinidamente. Todos nós temos muitas opiniões acerca do quadro político e social dos países dos outros, e Elísio Macamo decerto também as terá.
De qualquer forma, o que importa sublinhar é que o sociólogo se sentiu subalternizado ou desconsiderado na sua qualidade de moçambicano, adulto, cientista social e ser pensante. Sendo uma pessoa inteligente e imaginativa, construiu a partir desses dois micro-diálogos na zona de Braga — e certamente de outras não-referidas experiências anteriores — uma teoria que nos explicou no Público e que vai desembocar naquilo a que ele chama “superioridade inocente” do português relativamente ao africano, isto é, e como Macamo referiu, “uma superioridade que não nasce de arrogância deliberada, mas de uma combinação de ignorância confortável, memória selectiva e convicção de mérito herdado”. Dito de outra forma, para o sociólogo esse sentimento do português relativamente ao africano, não é “soberba agressiva” e também não é “supremacismo declarado” nem “racismo”. É, isso sim, “uma confiança tranquila, uma espécie de prerrogativa epistémica herdada, que se exerce sem má-fé, mas que produz efeitos de bloqueio na conversa”. É isso que, segundo Elísio Macamo, “impede que o português reconheça que o africano tem algo a ensinar sobre política, sobre história e até sobre o próprio colonialismo”.
Dito isto, o sociólogo reconhece que o impedimento é mútuo. Como afirma, “também o africano chega à conversa marcado por uma aprendizagem histórica que o torna, por vezes, um interlocutor defensivo, desconfiado ou cansado. Décadas de ser interpretado, descrito e tutelado produziram uma sensibilidade aguda às hierarquias, uma vigilância permanente do olhar do outro, uma tendência, compreensível, para ouvir antes o julgamento do que a pergunta. Há, de um lado, a superioridade inocente; do outro, a vulnerabilidade orgulhosa. Ambos são produtos da mesma história, ainda que vivida de forma desigual”.
Esta conceptualização é, a meu ver, perspicaz e convincente. Noto, além disso, que parece haver uma evolução positiva do pensamento de Elísio Macamo e isso é de saudar. É que, convém lembrá-lo a quem já se esqueceu, este é o mesmo sociólogo que apareceu nas páginas do Público, em 2017, a exigir (ou a sugerir) que Portugal pedisse desculpas pela escravatura. Não tanto aos africanos — ainda que considerasse que isso seria importante —, mas sobretudo a si próprio por num momento da história ter supostamente traído os seus valores. Elísio Macamo pensava, então, que Portugal deveria pedir desculpa, também, por “ter tido um passado vergonhoso” no capítulo da escravatura, mas não fazia igual avaliação a respeito do passado africano nesse capítulo. Tive, na altura, toda a disponibilidade para dialogar e debater com o sociólogo moçambicano e tentei mostrar-lhe, por duas ou três vezes, onde estavam e em que consistiam o seu desconhecimento dos factos históricos e os seus erros de raciocínio. Infelizmente nessa época Elisio Macamo acabou por se retirar da conversa e já não respondeu ao meu artigo “Uma mão cheia de enganos”, de 5 de Dezembro de 2017.
Passaram oito anos, a minha disponibilidade para debater os temas da escravatura, da escrita da História e outros mantém-se, e as minhas capacidades de análise e de crítica também. E é apoiado nestas últimas que afirmo que ao mesmo tempo que há que elogiar o exercício de conceptualização de comportamentos levado a cabo por Elísio Macamo também é preciso perceber aquilo que, no fundo, ele pretende. De facto, o seu discurso conciliatório não visa promover a arte do diálogo nem o prazer do texto, mas uma outra coisa que deve encarada com reserva. Esta teorização do sociólogo moçambicano, defendendo a troca de ideias entre o português e o africano (ou o brasileiro) e conducente ao ramo de oliveira que nos estende, tem um objectivo político e ideológico muito concreto: a descolonização do nosso presente e do nosso imaginário. Como o próprio Elísio Macamo escreve, “não há descolonização possível, seja da memória, do conhecimento ou do espaço público, se continuarmos a operar com as mesmas hierarquias epistémicas que o colonialismo instalou”. Importa dizer que os que querem essa “descolonização” partem da ideia de que as percepções negativas sobre África e os africanos foram construídas no Ocidente e que é necessário rever e reescrever tudo isso para desenterrar e amplificar as vozes que até então não se fizeram ouvir. Por isso, seria agora necessário desvalorizar as formas ocidentais e brancas de conhecimento, e de promover as outras para equilibrar os pratos da balança e atingir um equilíbrio de poder.
O que o sociólogo propõe e pretende, portanto, é uma nova “interlocução”. Como ele mesmo nos diz, “conversas em que a história não serve de álibi para a certeza, mas de convite à dúvida”. Quer, também, que os portugueses tenham “humildade intelectual”, isto é, que abram mão da profunda convicção de que nada na experiência dos africanos poderá “contrariar o esquema interpretativo já disponível”. Só assim, para Elísio Macamo, “a conversa po(derá) finalmente começar”.
Porém, e no que toca ao estudo do passado, há aqui um mal-entendido. A História não se faz por consensos nem através de diálogos, não se faz a partir das experiências pessoais de cada um, nem, a não ser em casos especiais, a ouvir e a integrar as opiniões que os actuais portugueses e africanos têm sobre acontecimentos passados. Por muito respeitáveis que sejam as considerações do jovem taxista nortenho e do recepcionista de hotel, em Braga, que dialogaram com Macamo na sua recente estadia em Portugal, as suas são apenas opiniões e não valem mais do que isso. Não é através delas, nem das opiniões dos actuais cidadãos moçambicanos de Maputo, que se chega ao conhecimento histórico. É através de documentos e do raciocínio. E esse caminho para a construção do saber não é negociável, não é moldável nem matéria de acordos politicamente correctos, ainda que venham embrulhados em belos ramos de oliveira ou com etiquetas de “descolonização”. Todo o diálogo é bem vindo, claro, e o entendimento e conciliação entre as pessoas é de aplaudir e incentivar, mas também deve ficar muito claro que há que recusar terminantemente o pretenso conhecimento “pós-colonial” ou a chamada “descolonização do saber”. Aquilo a que os activistas woke chamam “descolonização da memória” ou “do pensamento” é, no campo da historiografia, uma salganhada em que cada nacionalidade, etnia ou grupo de pressão deita para a panela os ingredientes de que gosta ou que valoriza, e de lá retira os que detesta ou que são inconvenientes para os seus propósitos. A sopa que daí resulta não é historiografia, mas tão só um saco de recordações avulsas ou a tentativa de vender gato por lebre.
Em Setembro de 2022, num texto que causou grande polémica, o historiador norte-americano James H. Sweet fez a pergunta importante, que é, aliás, o título desse texto: Is History History? Essa pergunta, que irritou muitos dos seus pares de esquerda, é pertinente e faz todo o sentido nestes tempos woke que vivemos e em que nos apresentam como História coisas que na verdade não o são. Como historiador estou naturalmente aberto a todos os contributos vindos de historiadores moçambicanos ou de qualquer outra nacionalidade que possam enriquecer ou, até, contrariar o “esquema interpretativo já disponível”, como Macamo lhe chama. Mas têm de ser História. Esse requisito é imprescindível e às vezes, à falta de documentos, aquilo que se apresenta como História produzida por africanos mais não é do que um enunciar de hipóteses e conjecturas que visam inverter ou derrubar a versão construída pela historiografia do século passado. Isso não só não basta como pode ser contraproducente. A História não é apenas um convite à dúvida, como pretende Elísio Macamo; é, em muitos casos, felizmente, uma certeza firme e bem documentada. E deve continuar a sê-lo. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador em 11 de Dezembro de2025).