1984 em pezinhos de lã

04-03-2017 11:00

Consta que após a eleição de Trump houve um aumento exponencial nas vendas de 1984, o livro de George Orwell. Uma vez que Trump faz da verdade mentira e vice-versa, e que a sua conselheira Kellyanne Conway fala em factos alternativos quando os factos documentados não lhe
agradam, compreende-se que as pessoas se tenham alarmado e tenham desejado reler 1984. Recorde-se que o herói do livro, Winston Smith, é um funcionário do Ministério da Verdade cuja função é alterar ou suprimir notícias, documentos ou artigos de há décadas atrás, para que o passado se ajuste como uma luva às ideias e interesses do presente. Convem igualmente lembrar que o livro foi publicado pela primeira vez em 1949 e tem sido, desde então, uma espécie de espada sobre a nossa cabeça, uma antevisão do que poderá ser o futuro, se não tivermos os
devidos cuidados com as pessoas a quem entregamos o poder.

Não surpreende, por isso, que haja muita gente de atalaia e focada nos perigos orwelianos que a presidência de Trump possa vir a trazer. Mas é trabalho escusado pois o tão receado mundo de 1984 já cá está há vários anos com a sua novilíngua, a sua fiscalização obsessiva e a torção da verdade. Poucos deram pela chegada desse mundo porque ele veio em pezinhos de lã e de uma forma muito diferente da que Orwell imaginou. Não chegou no gesto agressivo e autoritário de um novo Estaline mas na voz cândida e bem-intencionada de mães de família, de militantes de lutas sociais, de jovens adultos cheios de causas e ideias certas, de pessoas sensíveis que se preocupam sinceramente com os outros. 1984 chegou-nos não pela acção perversa de um autocrata mas sim por via de bem-intencionados pensamentos e discursos politicamente correctos.

E aí está ele a impor a sua lei. Todas as semanas temos novidades nessa área. A última de que tive conhecimento diz respeito a uma das empresas da Google que, segundo leio, desenvolveu um programa informático destinado a policiar e ajustar aquilo que é dito nas conversas na net. Esse programa revê os comentários e classifica-os como tóxicos se forem semelhantes a outros de que as pessoas não gostaram. Ou seja, trata-se de uma tecnologia que só por pudor não se chama Big Brother e que passa a ter o poder de sugerir a remoção do espaço público das opiniões desconformes. Isto, que parece benévolo e razoável, uma vez que é feito para moderar as conversas, é, de facto, completamente intolerável porque atribui a uma máquina - que, até ver, não sabe interpretar -, o direito de escrutinar a nossa escrita, de impor um molde ao discurso público e de impedir o suposto excesso ou, até, no limite, o eventual insulto, como se essas não fossem acções humanas que também fazem parte da vida social.

O que há de novo aqui é que as atribuições de censura são confiadas a uma tecnologia. Mas o resto é déjà vu. Há muito que a censura politicamente correcta está presente e atinge todas as
formas de expressão e de arte, do cinema à literatura. No E.T. original, por exemplo, os agentes da autoridade que perseguiam o extraterrestre empunhavam armas; na versão politicamente correcta em vez das armas passaram a empunhar walkie-talkies, para tornar a cena mais adequada às susceptibilidades modernas. Aqui há uns meses um romance de Mark Twain foi banido das escolas e das bibliotecas de uma região da Virgínia, por ter linguagem "racista", como
era inevitável que tivesse pois Twain escreveu uma história passada no sul dos Estados Unidos e usou a linguagem que então aí se usava. Isto é a tal ponto óbvio que custa a crer que haja tanta gente que não o entenda e que sugira uma de duas coisas: ou a proibição pura e simples das obras que ferem as nossas sensibilidades e opções ideológicas ou, à maneira do Winston Smith de 1984, a reescrita das partes ditas sensíveis. São formas de censura mais inclementes, mais estúpidas e, no fundo, mais perigosas, porque mais insidiosas e disseminadas, do que as censuras dos estados totalitários.

Os mais sugestionáveis ou emotivos arrepiam-se com a eventualidade de, com Trump, estarmos
a abrir a porta ao pesadelo de 1984. Lamento desenganá-los mas nós já estamos a viver esse pesadelo. Chama-se politicamente correcto e não o identificámos logo como sendo a distopia de Orwell porque estávamos a olhar para outra porta. Por isso ele chegou desapercebido e foi-se
instalando, passo a passo, nas cabeças das pessoas, gerando um mundo que é, no seu moralismo insípido, opressivo e geometricamente irrepreensível, o exacto reverso do espalhafatoso, desbocado e incorrecto mundo de Donald Trump - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez no Diário de Notícias, 4 de Março de 2017).