A tribo dos escoceses

05-07-2016 21:28

Gengis Khan foi o líder mongol que iniciou a conquista do que viria a ser o maior império do mundo. Sob o seu comando ou o dos seus descendentes, os mongóis conquistaram um território que ia das estepes ucranianas à península da Coreia e que abarcava, entre muitas outras regiões, a China e o Irão.

Esse enorme império cedo se fragmentou - era essa a lei da estepe. A segmentaridade era a causa da fragmentação. A sociedade mongol, tal como todas as outras sociedades nómadas, resultava da junção de segmentos (tribos, linhagens, etc.) que eram económica, jurídica e funcionalmente autónomos e equivalentes. Ou seja, quando as pessoas não estavam contentes com o rumo dos acontecimentos, podiam pegar na sua gente e nos seus rebanhos e zarpar para outras pastagens e outras fidelidades políticas. As tribos e as nações nómadas faziam-se assim, por agregação e desagregação. Quando estavam mal, os nómadas mudavam-se de armas e bagagens para pastagens mais verdejantes e alianças mais recompensadoras.

Tudo isto vem a propósito do Brexit. Já se escreveram e irão continuar a escrever-se rios de tinta sobre o assunto. Muito tem sido dito sobre os riscos desta decisão referendária, as razões que a explicam, as implicações que pode ter. Muitas análises têm sido feitas sobre quem votou a favor e contra, e sobre as respectivas motivações. E muitos têm sido os que, por essa Europa fora, têm discordado, rilhado os dentes e ameaçado os britânicos com as dez pragas do Egipto, seja explicitamente seja nas entrelinhas. Mas aquilo que me parece mais interessante e mais preocupante nesta atmosfera de sound and fury que envolve o Reino Unido como um denso nevoeiro, é a reacção escocesa.

A Escócia entrou no jogo democrático referendário, participou nesse processo, votando e, por conseguinte, legitimou-o e sancionou-o com a sua participação. Mas como não gostou do resultado global, começou de imediato a mover-se em sentido contrário ao do reino britânico a que pertence. Nicola Sturgeon e outros altos responsáveis escoceses começaram imediatamente a proclamar que a Escócia quer permanecer na União Europeia e que fará tudo o que for necessário para o conseguir. Ou seja, fazem constar que não aceitam nem respeitam os resultados do recente referendo. Pior. Na medida em que desenvolve uma diplomacia paralela com objectivos contrários aos do governo de Londres, Nicola Sturgeon também não respeita o referendo de 2014, no qual a maioria dos escoceses se pronunciou a favor da permanência no Reino Unido.

Ou seja, a Escócia comporta-se como uma tribo segmentar. Ameaça pegar nas suas gentes e nos seus rebanhos para se juntar a outra tribo. E este espírito é contagioso. Londres, por exemplo, também diz que não concorda com o Brexit, também sublinha que não votou nesse sentido, também se demarca de uma Inglaterra supostamente "rural" e "idosa" que prefere a saída, e manifesta-se, na rua, pela permanência na União. Todavia, a própria Londres traz a dissidência no seu seio porque Havering, na ponta nordeste da cidade, pode querer desligar-se dela visto ser uma das zonas mais eurocépticas do Reino Unido e ter votado em massa pela saída da União Europeia.

Por este caminho, pela aplicação deste princípio, chegaremos à secessão ao nível do distrito e da freguesia. O separatismo estará a cada esquina, não apenas na Escócia e na Catalunha mas em muitas outras regiões europeias e deixará de ser certo e seguro estabelecer acordos estado a estado. Se, com base nos nossos resultados paroquiais, começamos a não acatar os resultados à escala do país - por muito que possam desagradar-nos -, se as sociedades europeias começam a comportar-se como as tribos segmentares mongóis, então caminhamos, tal como o império de Gengis Khan, para a pulverização política e a Europa tem entre mãos um problema muitíssimo mais sério do que o do Brexit. Razão teve a rainha Isabel II para, na sessão de abertura do Parlamento escocês, recomendar aos parlamentares e à população em geral que tivessem calma e que ponderassem as coisas maduramente - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez no Diário de Notícias de 5 de Julho de 2016).