A Sábado e os negreiros portugueses
O último número da revista Sábado oferece-nos um extenso artigo sobre negreiros e suas fortunas. Esse artigo teve mesmo honras de capa sob o título “Os grandes traficantes de escravos em Portugal” e é justo reconhecer que, ao contrário do que muitas vezes acontece, está razoavelmente bem elaborado. O seu autor, o jornalista Marco Alves, leu algumas obras historiográficas e procurou fundamentar o que escreveu sobre os portugueses que nos séculos XVIII e XIX negociaram em escravatura e dela extraíram elevados lucros.
O articulista, porém, fez duas importantes confusões que induzem os leitores em erro e que é necessário desfazer. A primeira confusão resulta da mistura num mesmo saco de duas nacionalidades diferentes. O negreiro Francisco António Flores, por exemplo, não era português como Marco Alves supõe, mas sim brasileiro. O mesmo acontecia com os irmãos Sousa Breves. Quando o Brasil se tornou independente certas pessoas aí residentes optaram por permanecer portuguesas, outras escolheram ser brasileiras. O articulista não faz a destrinça, julga que é tudo português e, consequentemente, sobrecarrega o nosso país com as acções de gente que, de facto, não era súbdita da Coroa Portuguesa. Aliás, até o sobrecarrega com António Maria Bravo, um português que se fixou no Rio de Janeiro, em 1836, e que utilizava nas suas indústrias, como era vulgaríssimo nessa cidade e nessa época, mão-de-obra de escravos, mas que, como o próprio articulista reconhece, não estava envolvido no tráfico transatlântico de negros. A que título, então, aparece o seu nome neste artigo? Apenas a título de ser um antepassado de João Maria Bravo, um recente financiador do partido Chega, o que ilustra a confusão de planos em que o artigo frequentemente cai.
Outra confusão, bem mais grave e importante, é a que decorre da mistura num outro único saco dos tráficos legal e ilegal. Manuel Pinto da Fonseca, um português residente no Brasil, que terá sido o mais bem sucedido negreiro da década de 1840, fazia tráfico ilícito de escravos porque, nessa altura, esse comércio já não era autorizado nem no Brasil nem em Portugal. O mesmo sucedia com vários outros portugueses residentes em território brasileiro — portanto fora do alcance das directivas de Lisboa —, como Tomás da Costa Ramos (que o articulista não refere) ou Joaquim Pereira Marinho. Todavia, o conde de Ferreira, que segundo o articulista “terá comercializado cerca de 10 mil escravos entre 1816 e 1828” não fez nada de ilegal porque o tráfico para o Brasil foi lícito até 1830. O mesmo pode dizer-se de outros nomes mencionados no artigo da Sábado como José António Pereira ou Maurício van Zeller, que se envolveram no tráfico de escravos ainda no século XVIII.
Ou seja, o articulista olhou para todos os negreiros que mencionou como se a sua actividade fosse uniformemente sancionável tanto do ponto de vista legal como do ponto de vista moral, o que é um duplo erro. O juízo condenatório que, em 1838, um Alexandre Herculano, por exemplo, expressava acerca dos negreiros, recomendando que se lhes negasse “o sal e o lume, a água e a hospitalidade” e que deles se fugisse “como de empestados”, ainda não existia no século XVIII, ou pelo menos não se manifestava na esfera pública. E é preciso acrescentar que mesmo no tempo de Herculano o sentimento geral, em Portugal, era de tolerância e de aceitação social de quem, tendo andado a traficar negros, queria mudar de rumo — ou seja, um sentimento bem diferente do que existe hoje em dia, sobretudo entre a gente woke. Para ilustrar este ponto bastará dizer que até mesmo Sá da Bandeira, o maior, mais persistente e consistente abolicionista português, escrevia, em 1856, a respeito de Francisco António Flores — o tal negreiro brasileiro que a Sábado decidiu meter no pacote dos portugueses —, que “deve ser dado todo o apoio a traficantes de escravos que queiram ter iniciativas honestas”.
As condutas das pessoas devem ser avaliadas no quadro de concepções, valores e comportamentos correntes tidos como aceitáveis em cada época, bem como da legislação então vigente, e não a partir das ideias e leis que temos hoje em dia. O articulista aparentemente não pensou nisto. Em que terá pensado, então? Por que razão decidiu trazer os nomes destes antigos portugueses (de mistura com alguns brasileiros) às páginas da Sábado? Como eu disse em tempos, num debate na televisão, os traficantes de escravos portugueses não são secretos. Eram bem conhecidos no seu tempo e os historiadores conhecem-nos há muito. Até o rei D. José I foi accionista das companhias pombalinas que, no século XVIII, faziam tráfico de escravos de África para o Brasil. Para quê, então, esta exposição da revista Sábado? Será possível que se tenha procurado culpabilizar membros de famílias actualmente bem situadas na vida — os Van Zeller, os Ulrich, etc. — apontando-lhes a origem pouco recomendável das suas fortunas e lançando sobre eles um vento de condenação moral que possa vir a suscitar embaraço, arrependimento e eventual desejo de reparação, à semelhança das campanhas de acusação e culpabilização que vêm sendo feitas no Reino Unido?
Se foi esse o intuito é preciso dizer que labora num mal-entendido. Não se pode punir e onerar agora os vivos por acções de antepassados seus com base em conceitos e normas que então não existiam. As coisas pelas quais se pedem hoje em dia reparações e que os activistas woke querem verberar e sancionar, eram, na maior parte dos casos, legais na altura em que foram praticadas e foram, aliás, praticadas por todos os povos e nações (ainda que só se peçam reparações a alguns deles: os ocidentais). Sabendo isso os activistas woke têm querido à viva força colocar o problema exclusivamente no campo da moral, ou seja, levar-nos a condenar apenas do ponto de vista moral, e de modo absoluto e invariável — isto é, fora da História —, a escravatura levada a cabo por nações europeias e americanas, ainda que ela estivesse coberta pela lei e pelo costume. Supõem que essa condenação incondicional e intemporal mudará substancialmente os termos da questão e abrirá caminho ao pagamento de reparações. Contudo, não se terão dado conta de que a opção moralista os leva a um beco sem saída ou à incoerência.
Eu explico-me: se, por hipótese académica, decidíssemos que não devia ser a lei a balizar e a sancionar os comportamentos humanos, mas sim a moral, ainda assim não haveria motivo para reparações por causa do sistema transatlântico de escravatura que existiu entre os séculos XV e XIX, a não ser que estivessemos dispostos a reparar igualmente todas as outras injustiças históricas, incluindo outras modalidades de escravatura sofridas não apenas pelos africanos, mas por outros povos ao longo do tempo. É bem sabido que a História humana está infelizmente cheia de injustiças e violências, acumuladas desde as profundezas do passado e que a moral condena. Todas elas, tendo sido erradas, deveriam portanto ser reparadas por razões morais. E haveria meios, conhecimento e capacidade para uma tarefa dessa amplitude? A resposta é obviamente negativa, pois essa tarefa exigiria omnisciência e omnipotência divinas.
Claro que os woke poderão sempre alegar que, sendo humanamente impossível reparar todas as injustiças do mundo passado e presente, já seria muito bom que levássemos a cabo a mini-tarefa divina de reparar duas ou três delas. Mas como escolhê-las a não ser de forma arbitrária? E será isso justo e… moral? - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 12 de Novembro de 2025).