A rejeição da democracia

04-12-2016 16:39

A eleição de Donald Trump desencadeou uma verdadeira enxurrada de manifestações de surpresa, pesar, medo, o que se percebe porque ele é bombástico e imprevisível. Têm-se escrito milhares de linhas sobre o assunto e escutado milhares de opiniões. Surgiram previsões catastrofistas e iniciativas anti-Trump: cartas abertas a afirmar que o mundo o rejeita; petições para que resigne ao cargo; e, claro, agitação nas ruas. Nos últimos dias têm-se sucedido, em várias cidades dos Estados Unidos, manifestações alimentadas sobretudo por gente jovem que sai de casa e do campus universitário para se insurgir mais ou menos violentamente contra o que resultou das urnas eleitorais. Em Portland, por exemplo, a manifestação descambou em confrontos físicos, destruição de carros, montras partidas. A polícia considerou que estava perante um motim e agiu em conformidade. Acabo de ver na televisão, uma jovem manifestante explicar, muito compenetrada, que estava ali a manifestar-se (violentamente) contra Trump, um tipo perigoso porque incita à... violência. Confusões e incoerências de gente que perde o norte e o nexo no calor da militância e da luta. Nada de novo nem de preocupante.

O mesmo já não direi desta inclinação para rejeitar ou desconsiderar aquilo que resulta do sufrágio eleitoral ou de outras formas de consulta legítima às populações. Já vimos isto, aliás, no pós-Brexit, na Grã-Bretanha, onde uma parte da população não gostou do resultado do referendo e começou de imediato a tentar revertê-lo ou anulá-lo. Alegou-se que a decisão tinha emanado dos grupos etários mais velhos e de populações rurais pouco ou mal informadas - como se isso de alguma forma invalidasse ou desautorizasse a decisão colectiva do país -, houve pedidos para que o referendo fosse repetido ou que as pessoas se mobilizassem contra ele. Um dos mais notórios agitadores dessas águas tem sido Tony Blair.

E vemos agora algo de equivalente nos Estados Unidos e no mundo que observa o que lá se passa. Logo que se soube que Trump fora eleito, as redes sociais encheram-se de vozes indignadas com o resultado, atribuído, novamente, a matarruanos (do Midwest e do Deep South), quase se sugerindo que o voto das pessoas incultas ou com baixas qualificações não deveria valer tanto como o de um académico de Harvard. Surgiram vozes a sugerir que o resultado era menos válido ou legítimo porque, tudo somado, Hillary Clinton tinha obtido maior número de votos dos eleitores do que Donald Trump, o que, como sabemos, não é inédito pois nos Estados Unidos as eleições são indirectas, elege-se estado a estado e não pelo somatório total à escala nacional. Os eleitores de cada estado escolhem delegados que formam um colégio eleitoral e é esse colégio que, num segundo momento, elege o presidente. Ora, num derradeiro esforço para torcer o destino, ouvem-se agora apelos para que os delegados pró-Trump, chegados ao colégio eleitoral, reneguem os eleitores de base que lá os puseram, virem a casaca e votem, à última da hora, em Hillary Clinton.

É com base nessas e noutras ideias equivalentes que os media, as redes sociais e as ruas se agitam. Eu apoiaria esta agitação, este esbracejar, se as eleições norte-americanas (ou o referendo do Brexit) tivessem sido objecto de falcatruas ou vícios, como os das antigas "chapeladas" do século XIX. Ou, então, se tivessem sido condicionadas por meios violentos e intimidatórios. Mas não foi o caso. As pessoas que agora esbracejam fazem-no contra um processo que foi correcto e dentro da lei mas cujo resultado não lhes agradou. Ao fazê-lo, movem-se contra a democracia, rejeitam-na, e atingem directamente o tronco central da organização política dos nossos países democráticos. Ora isso é, a meu ver, ainda mais preocupante do que a eleição de um presidente errático que os norte-americanos poderão substituir daqui a quatro anos, se assim o entenderem. Mas o espírito não-democrático que tem vindo a crescer nas nossas sociedades abertas, este espírito de desrespeito pelas escolhas das populações e de não-aceitação de eventuais derrotas, não será tão fácil de inverter ou de extirpar - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez no Diário de Notícias de 4 de Dezembro de 2016).