A fonte secou

11-09-2025 23:17

No passado dia 27 de Agosto, o jornal Expresso resolveu difundir uma entrevista com Miguel Vale de Almeida, na qual esse antropólogo afirmou que “as reparações devem ser pelos efeitos do tráfico de pessoas escravizadas, pelos efeitos do colonialismo e pelos efeitos do racismo, que foi uma parte constitutiva do tráfico de pessoas escravizadas e do colonialismo”. Ora, essa entrevista não é nova. Na verdade trata-se da reprodução exacta da que já fora difundida em 3 de Maio de 2024. Ainda mais recentemente, no passado dia 8 de Setembro, o jornal Público voltou a difundir, na sua página de Facebook, uma entrevista feita à antropóloga Raquel Machaqueiro e já publicada há mais de um ano, a 15 de Julho de 2024, na qual, entre outros disparates que na altura apontei e critiquei, a referida antropóloga dizia que “a escravização de pessoas (tinha financiado) toda a empresa dos descobrimentos”.

Não surpreende que o Expresso e o Público, os dois maiores faróis do wokismo na nossa imprensa, insistam na temática da antiga escravatura e das reparações. O que chama a atenção — e é, no fim de contas, um auspicioso sinal — é que, para o fazer, tenham sentido a necessidade de ir buscar roupa velha para vestir os novos dias. Quem tem estado atento não terá deixado de reparar que, no último ano, tornaram-se muito menos frequentes ou desapareceram mesmo, das páginas de ambos os jornais, as vozes dos jornalistas e opinadores que até 2023-24 tanto massacravam os nossos ouvidos com a temática da escravatura ou das reparações. Aparentemente, a fonte secou.

Por isso, sem novo material, sem mais combustível, tanto o Expresso como o Público tiveram de deitar mãos a material usado e a gente — os antropólogos Miguel Vale de Almeida e Raquel Machaqueiro — que não sabe dizer mais do que já disse. O que não se lhes pode levar a mal. Nenhum deles é especialista no assunto e o saber histórico não cai do céu aos trambulhões nem se adquire por milagre ou por inclinações políticas. É verdade que, como assinala, com muitíssimo acerto, o grande historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, nos dias que correm “todas as pessoas pensam que têm direito a ter uma opinião sobre história”. Mas trata-se de palpites, de um saber pela rama. O conhecimento histórico não se improvisa, leva muito tempo a construir e não se adquire com a leitura apressada de alguns livros. É preciso ler muitas dezenas deles e centenas ou milhares de documentos para formar um saber sólido e equilibrado sobre um assunto.

Haverá em Portugal, do lado da gente woke, quem tenha esse saber na sua bagagem? Se o há ainda não apareceu a debater no espaço público. Quem, em 2017 e anos seguintes veio a terreiro com muita verve, muita militância, mas escasso conhecimento, para além de umas palavras de ordem e de umas superficialidades politicamente correctas, foram jornalistas, sociólogos, antropólogos, artistas plásticos, políticos, cineastas, cantores, activistas de diversas formações profissionais. Não é mau que haja muitas pessoas na sociedade em geral a pronunciarem-se sobre o tema da escravatura, mas não deixa de ser estranho — e significativo, também — que historiadores woke ou pró-woke continuem a não aparecer para defender esta sua dama. De facto já decorreram oito longos anos desde que Marcelo Rebelo de Sousa foi a Gorée e que o debate público sobre a escravatura se iniciou entre nós, mas com duas ou três excepções muitíssimo pontuais, a defesa da versão woke sobre o assunto tem estado a cargo de gente que não sabe a fundo do assunto. Por isso, a mensagem é sempre a mesma, parece um disco riscado, e, ao que parece está esgotada, razão pela qual o Expresso e o Público tiveram de lançar mão aos restos de ontem, ao déjà vu, à repetição de chavões e de palavras de ordem, para tentar manter o tema a flutuar na ordem do dia.

No esforço de doutrinação e propaganda woke, evidente nestas republicações, o que mais interessa não são as requentadas lengalengas dos antropólogos Miguel Vale de Almeida e Raquel Machaqueiro, mas a reacção de rejeição dos leitores. Em ambos os jornais, as reacções adversas às opiniões dos dois antropólogos ultrapassam — no caso do Público ultrapassam mesmo largamente — as demonstrações de apoio, o que é um indicador positivo sobre o sentir do país a respeito das tais ideias peregrinas de “perversidade especial do tráfico de escravos português” ou de “reparação dos efeitos do colonialismo”. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 11 de Setembro de 2025).