A extrema-esquerda não larga o osso (mas tem zero em aprendizagem)

12-06-2023 15:06

No último Expresso, José Soeiro, sociólogo, colunista desse jornal, militante do Bloco de Esquerda e ex-deputado por esse partido, repescou o assunto do Conde de Ferreira e da censura de uma exposição artística no Centro Hospitalar Conde de Ferreira, no Porto.

Esta repescagem não é de estranhar. Como já vimos no passado a respeito de Grada Kilomba — cujo banalíssimo facto de não ter sido escolhida para representar Portugal na Bienal de Veneza levantou clamores de “racismo” e fez com que, durante meses, muitos radicais de esquerda escrevessem rios de tinta, rasgassem vestes e arrepelassem cabelos — os militantes woke, obcecados com a questão da antiga escravatura, fazem, agora, render o peixe do Conde de Ferreira. A estrema-esquerda quando abocanha não larga. Por isso José Soeiro recebe o testemunho de um companheiro de equipa e volta ao assunto, prosseguindo a corrida. Nada traz de novo a não ser um ataque ao PSD, por intermédio da sua vereadora na Câmara do Porto, mas, de caminho, diz algumas asneiras.

Não, José Soeiro, o Brasil não prolongou o tráfico transatlântico de escravos até 1888. Esse foi o ano em que o Brasil emancipou os escravos existentes no país. O tráfico de negros vindos de África já havia terminado mais de trinta anos antes, na sequência da pressão britânica e da lei Eusébio de Queirós, de 1850.

E sim, ex-deputado Soeiro, por muito que lhe custe a engolir ou a entender, em 1761 Portugal aboliu, de facto, a “escravatura” no seu território europeu, só que, como já se esclareceu dezenas de vezes, essa palavra tinha, nos séculos XVIII e XIX, um significado diferente daquele que actualmente, por norma, se lhe dá. Significava “tráfico de escravos” (ou “tráfico da escravatura”, como também se dizia) e o Marquês de Pombal proibiu efectivamente, ainda que de forma parcial e limitada, esse tráfico, isto é, interditou a entrada de novos escravos na metrópole portuguesa. Para a sujeição de pessoas ao trabalho coercivo, à perda de controlo sobre o seu corpo e o dos seus filhos e outras formas daquilo a que Orlando Patterson chamou “morte social”, usava-se a palavra “escravidão” ou, mais correctamente, a expressão “estado de escravidão”.

E de novo não, José Soeiro, não sugira que há silêncio acerca da escravatura ou do Conde de Ferreira e de outras pessoas que ganharam dinheiro com o tráfico de escravos. Já houve esse silêncio, de facto, mas acabou há muito. Eu próprio escrevi um livro, em 1999, cujo título é Os Sons do Silêncio, o meu colega José Capela publicou em 2012, um estudo sobre negreiros específicos intitulado Conde de Ferreira & Cª. Traficantes de Escravos, Arlindo Manuel Caldeira escreveu, em 2013, Escravos e Traficantes no Império Português, e há muitas outras publicações sobre o assunto. Acresce que também há, desde Abril de 2017 — ou seja, há mais de seis anos —, um amplo debate público sobre a questão da escravatura, debate que tem gerado mais de uma centena de artigos, livros, e colóquios, entrevistas e muitas intervenções radiofónicas e televisivas.

José Soeiro parece ignorar tudo isso e fala na “necessidade de aprofundar o debate” sobre o tráfico de pessoas escravizadas. Porquê? Porque convém aos woke de extrema-esquerda fazer de conta que o debate não existe, ou que é débil, e que há um pesadíssimo e impenetrável silêncio a cobrir o envolvimento de Portugal na questão da escravatura. Precisam desse imaginário silêncio para justificar a continuação da sua campanha política de endoutrinação e lavagem aos cérebros. É falso, dupla e triplamente falso que assim seja, mas a extrema-esquerda tem uma relação muito particular com falsidade e verdade, e não será esse pequeno detalhe que a fará desistir ou mudar de rumo. O que importa é não largar o osso da escravatura, ainda que se continue teimosamente tão ignorante como em 2017, quando este debate público começou. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 12 de Junho de 2023).