A exibição do terror

12-10-2023 11:43

Imaginemo-nos no Norte do actual Iraque, no século IX a. C., reinado de Assurnasirpal II, quando a guerra mudou de tom com a assunção de uma espantosa crueldade por parte do exército assírio: gente empalada, pirâmides de cabeças frente às portas das cidades conquistadas, esfolamentos, populações inteiras queimadas vivas no interior das suas casas. Raids, deportações, massacres, mudaram a face da guerra e o terror que os exércitos assírios passaram a inspirar levou a que vários reinos locais não oferecessem resistência ao seu avanço. A exploração do terror tornou-se, então, sistemática na região e fez com que os estados que o usavam se tivessem imposto aos seus vizinhos.

Caminhemos para oriente e avancemos três séculos no tempo. Estamos, agora, no norte da China no ano de 518 a. C. Os exércitos inimigos dos reinos de Wu e de Ch’u estão frente a frente, a escassa distância, prontos a baterem-se em mais uma guerra de pequena amplitude e pouco mortífera que, então, constituía a forma usual de guerrear. Mas nessa manhã, e contra o que era costume, o rei de Wu dispôs três mil condenados à morte na linha da frente das suas tropas e ordenhou-lhes que se degolassem. Quando os homens obedeceram e cortaram as próprias gargantas, o inimigo debandou, apavorado. Naquela manhã a guerra tinha mudado de tom e tinha-se tornado muito mais cruel porque um dos contendores havia lançado mão do terror, como arma de acção psicológica.

Essa mudança de tom ocorreu em todo o lado, tornando a guerra ainda mais horrível e assustadora. Nos séculos XVI e XVII, por exemplo, os exércitos do reino de Ndongo, na actual Angola, exibiam caveiras no campo de batalha para intimidar os inimigos. Poderia multiplicar estes exemplos por mil, num medonho cortejo que vem da Antiguidade até ao presente, porque estes e outros métodos semelhantes foram utilizados incontáveis vezes na história do mundo e sempre com o mesmo objectivo em todos os continentes, mas não quero sobrecarregar quem me lê com mais referências que, aliás, de pouco adiantariam pois a ideia do papel do terror na guerra e na política é de todos intuída ou conhecida. O que interessa sublinhar é que com os actuais meios de difusão e recepção de imagens e mensagens ao alcance de qualquer pessoa, seja em que ponto do planeta for, a possibilidade de fazer a guerra através do terror e da sua exibição aumentou exponencialmente.

E vem isto a propósito do recente ataque de terroristas do Hamas a populações indefesas em Israel. Os próprios terroristas se encarregaram de difundir imagens das atrocidades que praticaram e que, num recente artigo, Maria João Marques, elencou bem e com a adequada e saudável carga de indignação: “O Hamas fez uma incursão em território israelita onde deliberadamente alvejou civis. Filmou tudo: queria que o mundo não ficasse com dúvidas sobre a sua barbárie (e não ficámos). Decapitou bebés. Raptou crianças pequenas e pôs em jaulas. Caçou mulheres num festival de música e exibiu-as depois do cativeiro, umas mortas e despidas com soldados sentados em cima do corpo, outras ensanguentadas no meio das calças. Provavelmente violadas – sabemos bem, desde o ISIS, o que fazem às raparigas que sequestram. Senhoras de idade raptadas. Famílias exterminadas em casa. Jovens do festival de música massacrados.”

Isto não é inédito, claro, nem específico dos terroristas do Hamas ou daquela região do mundo. Temos visto coisas análogas, temos convivido quase diariamente com a visão do terror desde que a invasão russa começou, tanto em Bucha como noutros locais, com destruições, massacres e torturas, terríveis acontecimentos que foram propositada ou involuntariamente mostrados ao mundo. Um dos episódios do género chegou ao nosso conhecimento graças à CNN, de onde transitou para os outros órgãos de comunicação ocidentais e nos horrorisou a todos. Num vídeo gravado, ao que tudo indica, no último Verão, e que circula actualmente nas redes sociais russas, vê-se o que parece ser um soldado ucraniano a ser decapitado, à faca, por um algoz que se julga ser um militar russo. Mais imagens, alegadamente de Bakhmut, mostrariam cabeças de soldados ucranianos espetadas em estacas.

As autoridades russas procuraram demarcar-se daquele sadismo dizendo ser necessário verificar a autenticidade das imagens. As suas homólogas ucranianas, que não questionam essa autenticidade e que as contra-exploram para suscitar indignação, pediram ao mundo para ver, novamente, a bestialidade russa em acção e para agir no sentido de a impedir de continuar a matar. A União Europeia exigiu um inquérito rigoroso e o julgamento dos eventuais responsáveis. Esse é, porém, o plano das declarações e do confronto político, da propaganda e da contra-propaganda e perante ele cada um de nós faz o seu juizo e toma posição. Para mim, e até prova em contrário, as imagens são autênticas e a única dúvida que tenho é se a sua divulgação foi feita à revelia ou com a anuência expressa ou tácita das autoridades russas.

Mas se posso ter algumas interrogações relativamente à intencionalidade das chefias russas, não tenho qualquer dúvida quanto à vontade das chefias do Hamas porque elas mesmas se encarregaram de a explicitar. Efectivamente, na passada segunda-feira o porta-voz das brigadas Al Qasam, o braço armado da organização, veio assegurar que por cada ataque de retaliação israelita a Gaza o Hamas iria executar publicamente um dos reféns que conserva em cativeiro e transmitir a sua execução através da internet.

Ou seja, o que temos aqui é o desejo expresso de mostrar o terror, de o divulgar e tornar conhecido, para que ele produza o seu efeito dissolvente e dissuasor no ânimo e na vontade de combater dos adversários. A lógica e a função são exactamente as mesmas dos antigos horrores assírios ou chineses com que iniciei este artigo. Impressiona e angustia perceber como toda esta animalidade e sadismo se perpetuam no tempo, apesar das Convenções de Genebra, dos acordos, das regras supostamente mais civilizadas da guerra actual. Essa perpetuação parece ser inevitável porque a guerra autoriza a matar e solta a brutalidade, a desumanidade, a animalidade, que há em muitas pessoas. Não há progresso moral, a esse nível, nem regiões da terra salutarmente livres dos monstros humanos capazes de fazer tais coisas. Mas, isto dito, a pergunta que aqui queria fazer, porque, neste contexto, me parece importante colocá-la às nossas sociedades livres, é a seguinte: devemos mostrar as atrocidades dos terroristas do Hamas, divulgá-las, difundi-las, sabendo que são armas de guerra?

Talvez já estejamos esquecidos de que há poucos anos, no Iraque e na Síria, o chamado Estado Islâmico recorreu massivamente a arrepiantes métodos de execução que filmava e divulgava. A tal ponto o fez, e a tal ponto era óbvia a razão por que o fazia, que se colocou muitas vezes a hipótese — e o dilema — de deixar pura e simplesmente de noticiar as suas terríveis acções, isto é, de fazer um blackout que o condenasse à não existência ou ao silêncio e apagamento na sociedade de informação. As autoridades europeias que me representam bloquearam, logo no início da recente invasão da Ucrânia, os canais de propaganda da Rússia. Deveríamos fazer outro tanto relativamente às acções sádicas e cruéis dos terroristas do Hamas e à sua propaganda? O governo britânico parece estar ir nesse sentido e por muito que isso custe a quem, como eu, defende uma sociedade aberta e sem censura, é capaz de, neste caso, não haver outro remédio. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador em 12 de Outubro de 2023).