A Europa e os novos manuais de ideologia
Recentemente os jornais e outros meios de comunicação deram destaque a uma proposta da ministra da educação alemã para criar um só livro de História para os ensinos secundários de todos os estados membros da União Europeia. O intuito manifesto é o de ajudar, por essa via, a firmar os supostos valores comuns europeus.
Por surpreendente que possa parecer, esta proposta já era esperada — pelo menos eu já a esperava. Efectivamente, no verão passado, publicou-se um manual franco-alemão para o secundário concebido e produzido em partes iguais por franceses e alemães. Por razões profissionais que não interessa detalhar aqui, fui forçado a escrever um comentário sobre o assunto e fiquei perfeitamente esclarecido quanto a propósitos e métodos deste tipo de parcerias intra-europeias. A génese do manual franco-alemão conta-se em poucas palavras. Em 2003, o Presidente Chirac e o Chanceler Schröder, apostados em reforçar a aproximação política dos respectivos países, decidiram promover a elaboração de manuais comuns que pudessem ser adoptados no ensino da História no secundário francês e alemão. No ano seguinte, formou-se um comité dito científico — constituído maioritariamente por altos funcionários dos dois países — que assumiu a direcção de um grupo de professores liceais de História, irmãmente divididos entre alemães e franceses, ao qual coube a redacção do texto. Até ao momento saiu apenas um dos três volumes previstos, justamente o que se debruça sobre a história da Europa e do Mundo no pós-guerra, ou seja, de 1945 até à actualidade. No prefácio do livro, os membros do comité científico que dirigiu o projecto alinham vários argumentos para justificar a iniciativa: garantem que o entrecruzamento de perspectivas franco-alemãs, e a correspondente multiplicação de pontos de vista, produz uma história mais completa, mais verdadeira e mais profunda; asseguram que a aprendizagem de uma história comum aplaina as desinteligências entre os povos; e afiançam que esse livro constitui uma mais-valia pedagógica e científica, tanto quanto ao método como quanto ao conteúdo. Esperam, por isso, que o seu manual faça escola e que possa servir de modelo e de incentivo a um futuro manual europeu.
Muita desta argumentação é simples presunção e água benta, que, como sabemos, cada qual é livre de tomar à sua vontade. Os membros do dito comité científico perfilham manifestamente a crença de que a aprendizagem de uma história comum dissolverá a conflitualidade entre os povos — esquecendo que as guerras civis provam, infelizmente, o contrário. Acreditam, também, que a visão que propõem é mais imparcial, sem valorizarem o facto de o manual transportar consigo as marcas do seu nascimento e objectivo, isto é, de se afadigar na promoção de uma ideologia pan-europeísta — sob direcção do eixo franco-alemão — e na diabolização dos Estados Unidos. Mas, se estas e outras ideias são demasiado ingénuas para merecerem grandes comentários, importa, por outro lado, assinalar que a expectativa manifestada quanto à fertilidade do exemplo se materializou rapidamente e que a ideia de um manual único já aí está a bater à porta dos parceiros europeus.
Alguns, como a Espanha, aplaudem tal ideia; outros, como a Dinamarca ou a Polónia, rejeitam-na. As razões são óbvias: os grandes países têm interesse em patrocinar projectos em que, por inerência do seu peso relativo, sairão enaltecidos; os pequenos países, receiam precisamente o contrário. A acreditar nas notícias, Portugal fez de conta que não estava em casa e não respondeu à chamada, preferindo, para já, não se pronunciar, o que também é uma forma de se posicionar.
Este jogo de interesses não surpreende, tal como não surpreende o combustível de que se alimenta. A possibilidade de moldar o passado de acordo com as metas e conveniências de cada momento é demasiado tentadora e desde os alvores do tempo histórico que os políticos procuraram promover alianças através da manipulação da memória do passado. As sociedades que não dispunham de registo escrito desse passado usaram a genealogia como forma de soldar os seus segmentos. Foi desse modo, com base numa ideologia do parentesco que se reconstruía de acordo com as conveniências, e não com base na consanguinidade como geralmente se julga, que as tribos se construíram. As sociedades com escrita continuaram a aplicar os mesmos métodos mas complementando-os com um mecanismo mais poderoso: a manipulação da História. Aquilo a que assistimos agora, com a proposta da ministra alemã, é, pois, um novo passo em direcção a um velho objectivo: apaguemos diatribes antigas, tornemos o relato insonso e inodoro de modo a ser digerível por todos, e teremos os condimentos indispensáveis para construir a grande tribo europeia.
Tudo nesta mecânica remete para a ideologia, nada remete para a História e, a bem dizer, pouco inova. O que surpreende — e preocupa — é a forma como a nossa passividade e complacência tem permitido que o pensamento politicamente correcto avance à velocidade da luz, ganhando metros sobre metros a cada segundo que passa. Aqueles que me têm lido sabem como nos últimos anos essa preocupação tem vindo a alimentar vários dos meus escritos na Atlântico e noutros locais. A ideia peregrina de um livro de história único é, em minha opinião, apenas mais um degrau na escalada em direcção à criação de polícias do pensamento, cada vez mais omnipresentes, exigentes e coercivas. Há, na Europa uma miríade de Big Brothers que nos vigia, que nos impõe o ritmo e que nos diz o que devemos e não devemos pensar, tanto quanto ao futuro como quanto ao passado. Essa gente tomou posse da História e converteu-a numa espécie de casa dos espelhos onde pode adelgaçar ou engordar os acontecimentos ao sabor das circunstâncias. Dizem-nos que esse jogo de espelhos servirá nobres fins. Mas, ainda que isso fosse verdadeiro, seria uma justificação suficiente para o legitimar?
Dei aulas no secundário numa época em que o ensino da História estava ao serviço da promoção da democracia. Falava-se muito de Atenas e nada de Esparta; nada, também de Alexandre da Macedónia e muito pouco do Império Romano — tidos, ambos, por inadequadamente “imperialistas”. Um programa assim desenhado poderá ter contribuído para promover a democracia, mas os resultados em termos de conhecimentos adquiridos pareceram-me desde logo catastróficos. Tive, desde o início, a sensação de que alguém se esquecera, nessa engenharia didáctica, de que a História não é um mero instrumento para atingir fins políticos, por mais louváveis que sejam. É, também, entre outras coisas, uma maneira de compreender a trama dos acontecimentos humanos, de desenvolver o sentido crítico dos alunos e de estimular a procura da verdade.
Ora, será que o manual único com que nos acenam — ou ameaçam — lá da Alemanha promoverá tudo isso? Como será que através de um manual tendencialmente asséptico — para ser aceite por todos — se desenvolverão a curiosidade e sentido crítico dos alunos? Como poderá um livro deste género digerir e apresentar a história riquíssima de cada um dos países europeus? Que dimensão e espessura terá, por exemplo, a história de Portugal num manual desse tipo? Ficará reduzida a um pequeno digest da história dos Descobrimentos?
Estas e outras perguntas alimentam a preocupação com que venho assistindo à progressiva plastificação das nossas referências culturais. Uma plastificação que, significativamente, se processa ao mesmo tempo que disciplinas como História e Filosofia vão perdendo terreno nas organizações curriculares, e que cresce, em seu lugar, um pronto-a-vestir ideológico que se adopta de forma acrítica - João Pedro Marques (publicado pela primeira vez in Atlântico, nº 26, 2007).