A duração da guerra

10-11-2001 12:21

No mundo ocidental crescem de dia para dia os sinais de impaciência e de dúvida, a respeito do rumo que a guerra ao terrorismo tem vindo a seguir. Para satisfação das esquerdas pacifistas e anti-americanas, muita gente ponderada começa a arrepiar-se com os chamados “efeitos colaterais” e pergunta-se como será possível que após toneladas e toneladas de bombas sobre cidades e aldeias tudo esteja aparentemente na mesma. Essa gente ponderada já fala em “impasse”, em “atoleiro”, já se exaspera por não se atingirem metas palpáveis e visíveis.

Este emergir da dúvida — e o correlativo arrefecimento do entusiasmo inicial — surpreende quando, como se sabe, os líderes norte-americanos se preocuparam, desde o início, em sublinhar que a guerra iria ser dolorosa e longa. É verdade que as opiniões públicas são voláteis e esquecem depressa as convicções de ontem mas, apesar de tudo, esse ontem é ainda tão recente que parece haver aqui um mal entendido de base, algo que levou as pessoas a não perceberem de forma clara o que estava em causa e a mensagem que se lhes transmitiu. De facto, o que deverá entender-se pela expressão “guerra longa”?

Não sou militar e não possuo dados que me permitam avaliar do avanço das operações no terreno. Mas tenho algum conhecimento da história para poder pensar o problema da duração das guerras. Talvez dois exemplos extraídos da história da Ásia nos ajudem a perspectivar melhor a questão.

1- Ao longo de quase toda a sua existência a China enfrentou os nómadas da estepe. De um lado e de outro de uma fronteira demarcada pela Grande Muralha confrontavam-se dois modos de vida, duas perspectivas, incompatíveis entre si. A sul, a China agrícola e urbana, fortemente povoada e burocratizada, a terra das técnicas sofisticadas, das artes refinadas, dos letrados e dos filósofos. A norte, o mundo tribal, esparso — talvez 1 milhão de habitantes — e veicular dos pastores nómadas, da gente que habitava em tendas e que passava boa parte da vida no lombo de um cavalo; da gente que desprezava o agricultor, que enaltecia a guerra e que usava sistematicamente a chacina e o terror como formas de intimidação e paralização da civilização sedentária.

O embate entre esses dois mundos foi longo, iniciando-se no século III a. C. e prosseguindo até meados do século XVIII, época em que, com a evolução dos transportes e da artilharia, se começou a esboroar a vantagem militar que a mobilidade e simplicidade logística conferiam ao nomadismo. No total, cerca de 2 mil anos de relações sangrentas, entrecortadas por períodos de acalmia, geralmente curtos.

Para conter a ameaça do norte a China tentou diferentes estratégias. Primeiro, a  construção das linhas defensivas que acabariam por dar origem à Grande Muralha: 5 mil kms de um esforço gigantesco — a única construção humana identificável do espaço — mas inglório, porque raramente evitou a penetração dos cavaleiros nómadas. Depois, desenvolveu uma política ofensiva, com grandes forças e acções a muitas centenas de kms da fronteira. Acções difíceis, diga-se. Por norma, o nómada evitava o embate, refugiava-se na imensidão da estepe e os soldados chineses nem chegavam a vê-lo. Ocasionalmente, os exércitos do Império Celestial conseguiam encurralar os adversários e infligiam-lhes pesadas derrotas. Contudo, a manutenção dos sedentários num espaço hostil e nu exigia um trem de mantimentos para homens e animais verdadeiramente gigantesco e incomportável para o Tesouro. Ou seja, mesmo quando vitoriosos, os chineses eram forçados a retirar e a suspender a sua política ofensiva porque não tinham meios para ocupar permanentemente a estepe. Em alternativa, a China tentou, ainda, uma política de apaziguamento, materializada no pagamento de subsídios em seda, álcool, cereais, e selada regularmente com o envio de uma princesa chinesa para partilhar o leito conjugal do senhor da estepe — “pobre perdiz” nas garras do “pássaro selvagem da Mongólia”, como cantavam os poetas locais. Mas os resultados do apaziguamento também não foram brilhantes. Os nómadas respeitavam pouco os tratados, preferindo fazer incursões de pilhagem e destruição para obter acordos ainda mais favoráveis.

É verdade que, aqui e além, algumas tribos se aproximaram da China e se sedentarizaram. É também verdade que os nómadas chegaram a conquistar território chinês e que as suas camadas dirigentes acabaram por aderir à cultura local. Mas, mesmo nesse caso, houve sempre tribos que recusavam a atracção do mundo civilizado e que refluíam para a estepe, onde se recompunham sempre novos impérios nómadas. E tudo recomeçava, num ciclo ininterrupto que apenas diferia porque os nomes das dinastias chinesas e dos povos dominantes na estepe foi mudando com o tempo.  

2- Em 1090 um muçulmano de doutrina ismaelita, al-Hasan i-Sabah, apoderou-se da fortaleza de Alamut, situada nas montanhas do norte do Irão. Os seus seguidores foram organizados numa sociedade secreta fortemente disciplinada e vocacionada para uma obediência total ao chefe, que, entretanto, assumiria o título de Shaik al-Djabal, “Velho da Montanha”. A admissão na seita implicava um duro treino físico e uma série de provas, através das quais o candidato se convertia em “missionário”.

Não dispondo de meios militares suficientes para afrontar tropas regulares, mas firmemente decidido a sustentar uma luta impiedosa contra o poder legítimo, o “Velho da Montanha” recorria ao terror e ao crime selectivo, algo que considerava como um dever religioso. Disfarçados de mendigos ou de mercadores, os seus “missionários” confundiam-se na multidão e, esperando o momento certo, apunhalavam mortalmente as suas vítimas. Preparados em segredo, os atentados eram cometidos em lugares públicos e concorridos — a rua, a mesquita —, para potenciarem o seu impacto político. Claro que, nessas condições, os criminosos dificilmente escapavam com vida e por isso se consideravam fidáuis, “os que se sacrificam”. Por via das dúvidas, para manterem a determinação e reforçarem a coragem, drogavam-se com haxixe, e daí o nome de Assassinos — Ashashins, isto é, consumidores de haxixe — pelo qual os membros da seita passaram a ser conhecidos. O termo vulgarizou-se e, por intermédio das Cruzadas, passou para as nossas línguas ocidentais para designar alguém cuja missão é matar.

Apesar da repressão dos poderes constituídos, a rede terrorista prosseguiu a sua acção, alargou-se à Síria ou ao Egipto e foi vitimizando altos funcionários, vizires, califas, semeando o terror no mundo islâmico. Com o tempo grande parte dos núcleos Assassinos acabaram por flectir na sua militância mas em Alamut, num terreno tido por inacessível, o “Velho da Montanha” continuou activo. E assim permanecia em 1256 quando os conquistadores mongóis tomaram a fortaleza, após trabalhoso cerco, e o executaram, o que foi visto pelos muçulmanos como um acto libertador.

Os meios ao dispor dos generais actuais são, obviamente, muito diferentes dos usados nas guerras da era pré-industrial. Ainda assim os dois exemplos que referi têm alguma pertinência. Se o terrorismo internacional islâmico puder ser visto como o equivalente moderno da seita dos Assassinos, há boas razões para crer que o problema pode ser resolvido. Não obstante as altas montanhas onde se escondem, bin Laden e os taliban poderão ser batidos tal como os Assassinos o foram no passado. Se, pelo contrário, esse terrorismo corresponder a posições e atitudes muito difundidas no Islão moderno, então não será aniquilável no curto nem no médio prazo.

Na primeira hipótese teremos guerra para muitos meses. Bem sei que na era da “fast food” as opiniões exigem uma “fast war”. Mas, por muito que isso desagrade aos espíritos sensíveis, trata-se de uma exigência irrealista. Na segunda hipótese teremos guerra de muitíssimo longa duração. Tal como a vida na estepe recompunha constantemente a ameaça nómada também o terrorismo islâmico de hoje será recomposto e a guerra perpetuar-se-á, neste ou noutro cenário.

Receio que a segunda hipótese seja a mais provável e que esse terrorismo tenha vindo para ficar. E, a meu ver, seria bom que as opiniões públicas ocidentais entendessem que uma guerra entre perspectivas opostas, entre concepções antagónicas da sociedade, do homem e dos seus direitos, dificilmente se vence. Vai-se combatendo, para manter a ameaça num nível tolerável e para preservar uma civilização. Num certo sentido a luta contra o terrorismo é semelhante à luta contra a doença. Podemos — e devemos — dominá-la, se nos esforçarmos e nisso investirmos, mas estaremos sempre sujeitos a ela - João Pedro Marques (publicado inicialmente in Público, 11 de Novembro de 2001).