Abolição, uma vitória da ideologia

25-10-2018 07:52

A escravatura foi uma prática muito antiga, continuada no tempo e largamente disseminada. Venderam-se e compraram-se pessoas em quase toda a parte do mundo e quem as adquiriu explorou o seu trabalho ou o seu corpo como muito bem entendeu. A dimensão do tráfico de escravos foi, por vezes, muito grande, maior do que a do tráfico transatlântico. No império romano, por exemplo, dos séculos V a.C. a V d.C., pelo menos 100 milhões de pessoas foram apropriadas e vendidas como escravas. Mas o que aqui mais importa sublinhar, para lá dos números — aterradores — é que a escravatura foi uma prática legal, aceite sem grandes protestos e que persistiu, com variantes, até ao último terço do século XVIII. Começou, então, a pouco e pouco, a ser entendida como algo intolerável e criminoso. Essa autêntica revolução de conceitos não surgiu no Extremo Oriente, nem em África, nem nos estados muçulmanos. Surgiu e afirmou-se no Ocidente — em especial na Grã-Bretanha — e foi ela que levou à ilegalização do tráfico de escravos e da escravidão em todo o mundo.

A mudança ocorrida no Ocidente surpreendeu muitos observadores contemporâneos. É verdade que a escravatura sempre provocara interrogações na cultura ocidental, desde logo porque assentava numa contradição básica: a de se considerar o escravo simultaneamente como pessoa, com a qual podia haver relacionamento, e como bem material, que podia ser alienado. A procura de soluções para os problemas morais que essa contradição levantava, levara os europeus à elaboração de um conjunto de ideias que desde Platão e Aristóteles se fora sedimentando e fortalecendo de século para século, convertendo-se numa ideologia dificilmente questionável, até porque, no decorrer da Idade Média, a cultura cristã se fora entrelaçando nela. Ao elevar a paciência e a humildade à categoria de virtudes, o cristianismo veio dar alguma dignidade moral ao escravo ao mesmo tempo que, no plano prático, contribuiu para amenizar substancialmente as suas condições de vida. Mas, no plano das ideias, o cristianismo tornou ainda mais sólido e coerente o edifício ideológico que herdara do mundo greco-romano. Pôr em causa a base ética da escravidão, na Idade Media, equivalia a contestar concepções fundamentais de propósito divino e de destino humano. É certo que a partir de Quinhentos as condições em que se realizava o tráfico e a exploração do trabalho africano levaram a que se questionassem as formas de obtenção e manutenção desses escravos e levantaram-se reparos a esse respeito. Mas eram objecções sobre a boa ou má aplicação das regras neste ou naquele caso, que geralmente não punham em causa a legitimidade da escravidão. Sabendo-se que o acto escravizador era aceite pela Bíblia, pela filosofia e pelos Padres da Igreja, o único problema era o de saber se os escravos tinham sido adquiridos por meios legítimos e, por norma, os ideólogos cristãos iam resolvendo esse dilema no quadro da ideologia escravista.

O muro ideológico que amparava a continuação da escravatura era, portanto, sólido e estava, além disso, muito bem escorado no interesse material. O sistema escravista representava, directa ou indirectamente, uma importante fonte de riqueza para os países coloniais e mostrava-se perfeitamente capaz de continuar a crescer. Em 1762, Adam Smith, que era um crítico da escravatura, dizia que não havia grandes esperanças de que ela pudesse acabar. O que se percebe. Havia terra em abundância nas colónias americanas e a escravidão que aí se praticava era vista por quase todos como a forma mais barata e produtiva de exploração do trabalho nas condições concretas lá existentes. Mas poucos anos depois da previsão de Adam Smith, e numa das mais surpreendentes decisões da história da humanidade, os países ocidentais começaram, um após outro, a ilegalizar a escravatura — primeiro o tráfico de escravos e depois a escravidão, porque era politicamente mais fácil atacar um ramo da actividade comercial do que a propriedade dos plantadores.

Por que razão aquilo que durante milénios fora aceite, e muitas vezes, até, promovido, sem grandes estremecimentos de alma, se tornou insuportável e passou a ser considerado um obstáculo ao verdadeiro destino do Homem? Segundo uma tese, que se foca no caso britânico, a súbita mudança de orientação teria razões económicas ligadas a uma crise do sistema escravista e ao começo da revolução industrial. Alega-se, nessa tese, que o sistema escravista estaria moribundo e, assim sendo, o abolicionismo tinha sido uma maneira moral, mas hipócrita, de lhe pôr fim. A abolição seria, então, o resultado quase inescapável do estertor final do mercantilismo e do avanço do liberalismo económico. Plausível e geometricamente simples, essa explicação teve — em certos sectores, ainda tem — grande aceitação. Todavia, o aprofundamento da investigação veio mostrar que tinha pés de barro. Na época em que os britânicos se viraram contra a escravatura, as plantações coloniais não estavam em crise, nem existia uma decadência estrutural do sistema escravista — pelo contrário. A Grã-Bretanha, convém lembrá-lo, era, por essa altura, o maior transportador de escravos e, graças à guerra com a França e à vitória em Trafalgar, dispunha de mais terras virgens nas colónias conquistadas e de um domínio quase absoluto dos mares. Pensando apenas em termos de interesse económico imediato, os britânicos deviam estar desejosos de promover a escravatura, não de lhe pôr um fim.

Uma segunda tese afirma que a escravatura teria acabado devido às revoltas escravas e ao medo que elas incutiam nos senhores. Mas trata-se de uma tese mais ideológica do que histórica, que não tem grande suporte factual. Os escravos reagiam à escravidão de formas muito diversas, que iam desde a colaboração com o sistema escravista até à revolta aberta contra ele. No entanto, a maior parte das revoltas não visava o fim da escravidão — apenas a liberdade dos revoltosos — e, de entre as que o visavam, só num caso, o do Haiti, a abolição pode ser vista como tendo, em parte, resultado dessa rebelião. Quanto à ideia de medo é óbvio que ele existia, mas era transitório e nunca foi um factor impeditivo da continuação da escravatura. Apesar da violência no Haiti ter causado a morte a 80 mil europeus, a França e as outras nações coloniais continuaram a importar um grande número de escravos para as Américas e só aboliram a escravidão 40 a 90 anos depois do início da revolta haitiana. O fim da escravatura não foi obra de Espártacos negros, mas sim daquilo que Tocqueville designou por “ilustrada vontade dos senhores”.

De onde vinha e o que é que alimentava essa “ilustrada vontade”? Vinha, em parte, de uma revolução cultural que induziu muitos ocidentais a alterar a forma como perspectivavam o escravo africano. A filosofia das Luzes, com a ênfase posta na ideia de liberdade, terá desempenhado um papel nessa alteração, ainda que esse papel não tenha sido tão decisivo quanto geralmente se pensa. Em bom rigor, os filósofos disseminaram ideias que tanto podiam servir para atacar como para defender a escravatura. O culto da sensibilidade também contribuiu para a formação de sentimentos de aversão ao tráfico e à escravidão. A ideia de que os confortos e luxos do Ocidente se obtinham à custa das lágrimas e do padecimento dos negros, tornou-se, aliás, frequente na literatura da época e mesmo alusões fugazes e indirectas a esse padecimento — como acontecia, por exemplo, em Candide, de Voltaire — podiam levar os leitores a indignar-se com a brutalidade e injustiça do sistema escravista. Não deve, porém, pensar-se que isso constituísse uma absoluta novidade e que os homens anteriores ao século XVIII fossem completamente insensíveis ao sofrimento dos africanos. No século XV, por exemplo, Zurara emocionara-se com a visão da chegada dos escravos e subsequente separação das famílias. O mesmo aconteceria a António Vieira, no século XVII. Contudo, os homens desses tempos e de séculos anteriores, consideravam a escravatura conforme com a vontade divina e socialmente útil. Ora, na segunda metade do século XVIII houve importantes mudanças não só na percepção do que seria a vontade de Deus a esse respeito, mas também na avaliação da utilidade da escravatura, que antes era tida por imprescindível e que, agora, começava a ser vista como dispensável e, mais do que isso, como contraproducente.

Foi esse o principal detonador da mudança. A filosofia, a literatura e certos desenvolvimentos do protestantismo da segunda metade do século XVIII tinham ajudado a criar uma perspectiva crítica do sistema escravista que exigia a sua abolição, mas essa exigência podia não ter sido mais do que uma moda passageira. Todavia, apareceu numa época em que se afirmava, igualmente, a firme convicção de que o fim da escravatura seria vantajoso do ponto de vista económico, pois — alegava-se — iria permitir aumentar a produtividade das plantações americanas e, uma vez terminado o tráfico negreiro, abrir a África a um comércio digno desse nome, um comércio de bens e não de pessoas, que seria mais lucrativo e cristão. Muitos ocidentais acreditavam que o trabalho livre era mais produtivo do que o trabalho escravo e estavam, por isso, convictos de que a abolição seria não só justa e humana, como benéfica para todos, escravos e senhores.

Esta convicção era uma miragem, como vários contemporâneos assinalaram e o futuro demonstraria. Mas foi essa miragem que contribuiu para que o abolicionismo se impusesse de forma relativamente rápida em várias áreas do universo protestante, nomeadamente no norte dos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. A campanha abolicionista britânica começou em 1787, ocupou longamente os trabalhos do Parlamento e passou pela publicação de livros, folhetos, jornais, pela elaboração de cadastros e registos da população escrava, pela organização de meetings, pelo fabrico de louça, roupas, medalhões, gravuras e pinturas alusivas à escravatura. Foi uma campanha de massas, propulsionada por uma propaganda como o mundo nunca vira. Após 20 anos de debates, a Grã-Bretanha aboliu completamente o tráfico de escravos, em 1807 e, depois, em 1833, o Parlamento britânico avançou ainda mais afoitamente e emancipou os quase 800 mil escravos existentes nas colónias, concedendo aos seus senhores a incrível indemnização de 20 milhões de libras, um montante que equivalia a mais de 40% das receitas do estado britânico. Note-se que para além desse montante, o Reino Unido gastou mais 12 milhões de libras no combate ao tráfico de escravos.

A acção dos britânicos provocou uma imensa admiração em todo o mundo. Em 1836, o deputado Alexandre Morais Sarmento, por exemplo, abria a boca de espanto e elogiava os ingleses, que “tiveram o arrojo de se multarem em duzentos milhões de cruzados para pagar indemnizações aos senhores (de escravos)”. Aliás, na Grã-Bretanha, havia plena noção do peso desse exemplo no futuro rumo das coisas. Como dizia o bispo Wardlaw, num sermão que proferiu em Glasgow, no dia em que a lei emancipacionista britânica entrou em vigor, “o mundo, envergonhado, imitar-nos-á”. Tinha razão. Mesmo que a abolição fosse contrária aos interesses políticos e económicos, era difícil para qualquer nação que pretendesse ser civilizada manter a escravatura ou formas aparentadas de sujeição. Por isso a Rússia aboliu a servidão, em 1861, e a China, ao preparar-se para tomar medidas abolicionistas, em 1906, reportou-se explicitamente às leis inglesas, que tinha por modelo e inspiração.

Se a abolição na longínqua China podia ser, para os abolicionistas, uma preocupação secundária, ela era uma prioridade no espaço do Atlântico. A Grã-Bretanha não se contentava com a completa extinção das práticas escravistas nos seus territórios nem se conformava com o ritmo abolicionista pausado adoptado por outras nações. Em conformidade, assumiu desde o primeiro momento o papel de locomotiva anti-escravista, actuando no mar — a Royal Navy capturou um total de 1575 navios negreiros — e pressionando os países ainda envolvidos no comércio negreiro para que seguissem o seu exemplo filantrópico. Todos o fizeram, com mais ou menos celeridade, empurrados por essa pressão ou pelo desenvolvimento de forças abolicionistas próprias, ou por ambas as coisas.

O fim do tráfico implicou uma luta difícil e cheia de ambiguidades. O mundo industrializado sujeitava as regiões importadoras de escravos a uma pressão contraditória. Ao mesmo tempo que atacava a escravatura por razões morais, humanitárias e ideológicas, aumentava a procura de produtos tropicais que só essas regiões produziam em quantidade e a bom preço. Por outro lado, o combate ao tráfico trouxe consigo novas condições de risco e de lucro potencial que atraíram aventureiros. Os dados disponíveis mostram que, antes da abolição, os lucros do comércio negreiro eram relativamente modestos, rondando os 5 a 8%. Mas no período abolicionista terão sido várias vezes maiores, chegando a ultrapassar os 300%, o que ajuda a explicar por que razão o tráfico negreiro feito de forma ilícita através do Atlântico ainda durou mais umas décadas, só terminando em 1866. A luta contra a escravidão em terra foi igualmente morosa e difícil, sendo o bem conhecido caso da Guerra da Secessão, nos Estados Unidos, o exemplo extremo dessa dificuldade.

Hoje, nas nossas sociedades liberais, quem olhar para o passado por um prisma moral, dirá que é óbvio que a escravatura teria de acabar, mas no século XIX isso não era assim tão óbvio. A vitória contra os que queriam a manutenção do anterior estado de coisas ficou a dever-se não a um qualquer determinismo económico, mas sim ao esforço dos que adoptaram o ideário abolicionista e lutaram arduamente por ele. A sua foi a vitória da ideologia sobre a avidez do ganho imediato. Como tinha notado, logo em 1792, o embaixador português em Londres, o partido dos abolicionistas crescia com uma rapidez extraordinária porque a “benevolência universal” se sobrepunha ao interesse material. Mesmo quando se percebeu que os resultados económicos da abolição não eram os esperados — longe disso — o processo abolicionista prosseguiu.

Em suma: após décadas de debate, de persistência militante, de pressões políticas e até mesmo de guerra, o Ocidente decretou para si próprio, e impôs ao mundo exterior, o fim de práticas que tinham passado a ser vistas como intoleráveis. A abolição foi uma conquista dos povos ocidentais e um acontecimento excepcional na história do mundo. É certo que houve, adiante, um grande retrocesso, quando o colonialismo de finais do século XIX e da primeira metade do século XX repôs em uso formas de trabalho forçado. Mas isso não apaga todo o caminho feito anteriormente. O conjunto de princípios que, então, se estabeleceram, permanecem válidos, vigentes e úteis no combate contra as várias formas de escravidão e de tráfico de pessoas que vão emergido no tempo presente - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Visão História, nº 49, Outubro de 2018).